O fotógrafo de todas as paradas

João Wainer descreve o caminho para fazer da fotografia uma expressão pessoal do autor. Defende a cultura livre e aponta as principais referências no seu trabalho.


João Wainer descreve o caminho para fazer da fotografia uma expressão pessoal do autor. Defende a cultura livre e aponta as principais referências no seu trabalho.


Um auto-retrato

O João Wainer é fotojornalista. Começou a trabalhar aos 16 anos, no
“Jornal da Tarde”. Em 1996, iniciou um trabalho de dez anos como
repórter fotográfico da “Folha de S.Paulo”. Ao mesmo tempo, dirigiu os
clipes das músicas “Soldado do Morro” (MV Bill), “Us Guerreiro” (Rappin
Hood) e “Torçu pu bem” (Trilha sonora do Gueto). Foi diretor de
fotografia da série de 12 documentários sobre Chico Buarque, veiculada
pela TV Bandeirantes em 2005 e depois lançada em DVD. Colaborou no
livro “Aqui Dentro Páginas de uma Memória: Carandiru”, sobre o presídio
de São Paulo. Tem dois livros publicados: “TTTSSS”, sobre pichação em
São Paulo, e “As Últimas Praias”, com fotografias do litoral entre
Ubatuba (SP) e Parati (RJ). João é editor da revista “FS”, colabora com
a “Folha de S.Paulo”, faz projetos independentes de vídeo e o blog Tranca Rua. Poderia ser um playboy,
porque é neto de Samuel Wainer, dono, editor-chefe e diretor do jornal
“Última Hora”, fundado em 1950 com o apoio do presidente Getúlio
Vargas, e da modelo e jornalista Danuza Leão. Mas não é. Escolheu
circular pela cidade, tem amigos na elite e na periferia, e é um
profissional respeitado. Nessa entrevista para ARede, fala de
sua experiência como fotógrafo. Conhecer essa e outras experiências é
importante porque quanto maior o número de câmeras de fotografia e de
vídeos nas mãos de movimentos sociais, comunidades, pontos de cultura,
maior a necessidade das pessoas pensarem em como usá-las. Não apenas do
ponto de vista técnico, mas em como definir temas, construir
narrativas, desenvolver linguagens. Para isso, como diz João, é preciso
ter referências — que nada mais é do que conhecer a experiência de quem
está há mais tempo na estrada e decidir como realizar a sua. Daí sairão
grandes trabalhos de fotografia e vídeo, originais e com uma pegada
ainda desconhecida de quem acompanha apenas a grande mídia brasileira.
João não dá lição em ninguém. Mas compartilha o que sabe. Aí vai.

ARede • Como você decidiu ser fotógrafo?
João Wainer • Uma coisa determinante para eu começar a
fotografar foi quando escutei os Racionais MCs pela primeira vez, aos
16 anos. Fiquei encantado e louco. Não sabia que queria ser fotógrafo,
mas queria me aproximar daquela realidade de algum jeito. A fotografia
foi uma maneira que encontrei. Virei fotógrafo por causa dos Racionais.
Não vim da periferia, e achava que as pessoas que eu conhecia até
então, que eram de classe média, de Perdizes (bairro de classe média
alta de São Paulo), desconheciam um mundo que é, na verdade, muito
maior do que o deles. Eu queria conhecer a cidade onde morava, me
assustava muito ver como as pessoas tinham medo, se isolavam atrás de
grades, de carros blindados. As pessoas tinham um pânico e eu queria
fazer um caminho oposto, a contramão desse pânico. Descobri coisas
incríveis. Até hoje, eu continuo nessa correria, e cada vez mais gosto
de ir para a quebrada.

ARede • Desde o começo você fez, além do trabalho do jornal, seu trabalho pessoal?

Marginália
João • Comecei a trabalhar em jornal. A partir daí, fui
desenvolvendo meus trabalhos pessoais, coisas de que eu gostava. Eu
sabia mais ou menos o que queria fotografar, mas não sabia como
formatar esse projeto. Demorou para que aquilo que eu fotografava
instintivamente se transformasse em alguma coisa mais concreta, mais
organizada. Para qualquer tipo de trabalho, você tem que ter paciência,
as coisas têm um tempo de maturação. Chega um momento em que dá um
estalo e você percebe o que está fazendo, saca como aquilo pode ser
apresentado. Comecei a colecionar fotos dentro de temas de que gostava,
de contextos que me interessavam. Eram situações sempre inspiradas pela
música dos Racionais. Fazia uma fotinha, outro dia voltava com outra,
ia separando. Um dia, olhei para trás e tinha 50 fotos boas. Aí juntei
e fui tentar encontrar um conceito que unisse todas elas. Assim surgiu
minha primeira apresentação desse trabalho, o Marginália, baseado no
universo de três rappers: Mano Brown, que cantava o cotidiano violento
da periferia de São Paulo; Dexter, que cantava o sistema penitenciário
(fiquei quatro anos fotografando o Carandiru e ele esteve preso lá); e
MV Bill, que cantava as guerras do tráfico nos morros do Rio. Fiz três
ensaios, sobre o cotidiano de cada um deles. Essa foi a primeira vez
que montei uma apresentação de meu trabalho. Em 2005, me inscrevi na
bolsa Fnac/Fotosite, para fotógrafos com menos de 30 anos, e ganhei. O
prêmio foi de R$ 12 mil em equipamentos e uma viagem à França. A Fnac
(livraria) fez uma exposição que correu todas as Fnacs do Brasil, em
cinco ou seis capitais. Depois, essa exposição foi para Paris e
Bordeaux, na França.

ARede • É importante ter referências, como os Racionais foram uma referência para você?
João • É sim. Precisa procurar saber o que fazem os outros
fotógrafos, descobrir de quem você mais gosta. Construir esse
repertório é muito mais importante que ter equipamento, por exemplo.
Equipamento, na lista de prioridades para um trabalho fotográfico, é a
última coisa. Não que não seja importante, é fundamental. Mas o cara
precisa saber o que quer, depois precisa ter uma facilidade de se
relacionar com as pessoas. Às vezes precisa ser mais psicólogo do que
fotógrafo, entender como o ser humano funciona, como chegar, convencer
o cara a fazer. Tem que ter uma sensibilidade forte. Por isso, o que
vem por último é o equipamento. Com qualquer um você faz. Importante é
a idéia que você tem na cabeça, o trabalho que você quer desenvolver.
Para realizar essa idéia você trabalha com o possível. Tem que fazer,
mostrar para as pessoas, às vezes você acerta e às vezes não. É assim
mesmo.

ARede • Quem eram os fotógrafos que você admirava,  quando você começou?
João • Os primeiros caras em quem eu me espelhei foram os
fotógrafos que trabalhavam no “Jornal da Tarde”, quando comecei: o
Vidal Cavalcanti, o Flávio Conceição, os caras que fotografavam para a
“Folha de S. Paulo”, como o Antônio Gaudério e o Jorge Araújo. Com o
tempo, comecei a abrir mais, a ver outras coisas. Com a internet, é
muito mais fácil ver os trabalhos que as pessoas fazem, desde que você
saiba pesquisar, tenha uma noção legal de onde achar. A internet
possibilita coisas que eram impensáveis há um tempo atrás, é uma
ferramenta preciosa. Ainda não caiu muito a ficha, para as pessoas, de
como essa ferramenta pode ser útil.

ARede • Como você foi recebido quando começou a freqüentar a periferia, vindo da parte rica da cidade?
João • Eu brinco que para tudo na vida tem uma frase do Mano
Brown. Tem uma que é “o que toma uma taça de champanhe, curte,
desbaratinado, tubaína e tutti frutti”. Isso eu sempre quis alcançar,
saber circular tanto na elite como na favela. E descobri que não existe
esse preconceito, que é meio lugar comum, de que se você é branco,
classe média, não pode circular na favela porque vai ser zoado. Tem que
saber chegar. Se você chegar com humildade, respeitando, vai ser bem
recebido. Com o tempo, vai ganhando o respeito e a confiança das
pessoas, chegando em um lugar e fazendo exatamente o que você se
comprometer a fazer. Aí o cara começa a te respeitar, e a próxima vez
que você for lá, te indica para outro cara, “pode falar com ele, que é
de confiança”, e o outro para o outro, “esse cara é firmeza”. Fazer o
caminho inverso não é a mesma coisa, porque a elite é muito mais
preconceituosa do que a favela, infinitamente mais preconceituosa. Eu
tinha uma Land Rover, um baita carro caro, e ia com ele para a favela
numa boa. Nunca tive problema nenhum, pelo contrário, os caras
gostavam, curtiam. Agora, se você chegar de Brasília no Fasano, os
caras vão te zoar, não vão te aceitar, é mais complicado. Mas não é
impossível. O cara tem que aprender os códigos da burguesia, da elite,
do mesmo jeito que precisei aprender os códigos da favela. Conheci
pessoas que conseguiram quebrar essa barreira. Não muitas, claro, mas
elas hoje circulam. Mas também tem poucas pessoas que conseguiram
quebrar a barreira do lado oposto.

ARede • Você conhece pessoas que fazem bons trabalhos em sua própria comunidade?

Projeto fotográfico IN/cômodos
João • Tem uma menina que eu acho incrível, a Talita Virgínia de
Lima. Ela mora na Grande São Paulo, no Embu. Conseguiu uma bolsa na
Faculdade de Fotografia do Senac, trabalhou como assistente do Iatã
Cannabrava e está desenvolvendo um trabalho que é uma das coisas mais
lindas que já vi. Ela resolveu fotografar e gravar em vídeo o cotidiano
da família dela. Você vê aquela coisa bem de dentro da família, vê a
mãe dela batendo bife, irmão chorando. De repente, tem uma foto que
mostra um varal e, secando dentro da casa, meio atrás da geladeira, um
colete à prova de balas da PM. O pai dela é policial militar e tem que
secar a roupa dentro da casa, para ninguém na vizinhança saber. A
Talita começou a fotografar o ponto de vista da filha de um policial
militar, que é um personagem odiado por todo mundo na quebrada. E esse
trabalho dela humaniza o cara. Você tem a foto de um PM dormindo com
uma pistola na cabeceira, ou se arrumando, botando a farda para ir
trabalhar, e a irmã dela, de dois anos, brincando ao lado. Quem vai
fazer essa foto, se não for a filha dele? Esse é um trabalho de muita
sensibilidade, incrível, que só quem está lá dentro pode fazer. E ela
teve essa sacada.

ARede • Você falou na bolsa que ganhou da Fnac. Essas bolsas e concursos são acessíveis? Como as pessoas ficam sabendo disso?
João • Internet. Tem que fuçar, tem que caçar, ir no Google e
procurar “bolsas fotógrafos”. Tem que perguntar para fotógrafos mais
experientes, que sabem onde tem bolsas ou concursos que acontecem todo
ano. Geralmente, não se paga nada para se inscrever. Se você ganhar uma
bolsa, te bancam durante um tempo para tocar seu trabalho.

ARede • Como estimular a produção fora dos meios tradicionais?
João • Primeiro, tem que dar acesso. Essa é a primeira geração
que vai ter isso. É tudo muito novo, então os filhos deles vão pegar
isso com mais facilidade. O cara que entrar em um negócio desse tem que
ter noção de que é um bandeirante, está desbravando uma floresta com
facão. Para esses que estão fazendo agora, vai ser mais difícil, não
tenho dúvida. Mas o lance é que na periferia há um mercado consumidor
monstruoso, que muitas vezes é esquecido. Acho que as pessoas deviam
seguir a frase do Fernando Pessoa [poeta português]: “fale para sua
aldeia que você vai falar para o mundo”. Tem que começar a olhar para a
sua comunidade, o que está em volta, limpar a cabeça e olhar com olhos
frescos, tirando todos os preconceitos.

ARede • O documentário do Mano Brown, que está no DVD dos Racionais, é um exemplo de como alguém pode contar sua própria história?
João • O Brown queria fazer um documentário trazendo todas as
referências dele. A gente chegou à conclusão de que não adiantava fazer
um documentário com um cara de uma grande produtora, tipo O2,
Conspiração. Tinha que deixar o Brown fazer com a linguagem dele, do
jeito que ele acha legal. A gente mandava um câmera com ele, que
gravava o que o Brown pedia. A edição foi dele. Sentado do lado de um
montador, dizia onde colocar cada cena. O conceito, a narrativa, o
conteúdo, tudo é dele. O DVD fez um baita sucesso na periferia. Às
vezes dizem que é longo. Tem uma hora e meia, realmente é. Mas o Brown
não tinha nada mais para cortar, porque o que ele queria passar era
aquilo. Conta a história da escravidão, da chegada dos negros em São
Paulo, da libertação da escravidão, de como o Capão Redondo [bairro da
zona sul de São Paulo] foi ocupado. Conta a história dos negros se
desenvolvendo no Capão, depois indo para o Centro, participar dos
bailes blacks, onde conheceram a música americana, James Brown, todos
esses caras. E como aquilo mexeu com a cabeça deles. Uma história que
ele sempre quis contar, desde quando os negros chegaram lá, até o rap
se formar. A minha interpretação é de que o Brown, que é muito
questionado, explica no documentário porque ele é daquele jeito. Se
você vir, vai entender porque ele é cabeça dura, tem contradições que
ele mesmo reconhece, e que não vai mudar, é da personalidade dele. É a
história dos negros, mas, no fundo, é a história dele. Se não fosse o
Brown, esse documentário, o DVD dos Racionais seria um DVD do show e
mais nada.

ARede • Você é a favor do copyright?

Projeto fotográfico IN/cômodos
João • Sou completamente a favor do copyfree. Se você for no meu
site, vai ver que minhas fotos não estão em alta resolução, mas também
não estão em baixa. Quero mais é que as pessoas puxem as fotos e usem
no que quiserem, façam circular, fico feliz quando isso acontece. Se a
Coca-Cola usar em uma campanha comercial é outra coisa, posso pensar em
processar. Mas em blog, em revistas, sou favorável. Acho que quem não
for, vai quebrar a cara, porque as gravadoras estão acabando, na música
não é mais assim, não tem mais como segurar isso com a internet. Vejo
fotógrafos dando Google para ver se usaram as fotos deles e processar,
ou colocando marca d’água nas imagens. Fica horrível, você só presta
atenção naquela marca horrorosa. Outro dia, recebi o e-mail de um cara
ensinando como colocar uma marca escondida na imagem para poder
rastrear, ver se copiaram e onde está. Pode? Vou ganhar minha grana
fotografando, fazendo o que sei fazer. É como músico, que não vai mais
ganhar grana vendendo CD, vai ganhar fazendo show.

ARede • Você conhece outras pessoas que fazem isso, na prática?
João • Tenho um amigo no Jardim Panorama [favela da zona sul de
São Paulo], o Pablo. Ele é rapper, é o Anjo dos Rappers. O esquema de
trabalho dele é assim: ele arrumou grana, alugou um estúdio para gravar
o CD dele, foi lá e gravou. E faz as cópias em casa; faz 300 cópias,
uma por uma, no computador. Divulga o som dele em rádio pirata, em
rádio comunitária. Leva no Largo da Batata [zona Oeste de São Paulo] e
vende direto para o camelô. O camelô é amigo dele e coloca o som para
tocar, os caras passam, escutam e já compram ali. Acho isso
sensacional. Já compraram o CD dele e piratearam. Outro dia foi fazer
um show na quebrada e já tinham ouvido o som dele, mil pessoas se
juntaram para assistir. Pablo faz a correria dele, e vai se
profissionalizando. Foi fazer um curso de cinema na Nós no Cinema, no
Rio, uma oficina de edição. Os caras chegaram para a classe e disseram
o seguinte: “Não estamos aqui para fazer de vocês editores
profissionais de cinema, mas porque queremos que vocês se tornem
pessoas melhores, queremos dar ética e caráter para vocês”. O Pablo
levantou e disse: “Ética e caráter eu aprendo na favela, com minha mãe,
não aqui. Estou aqui porque quero aprender a trabalhar com isso. Se
você não for me ensinar, diz logo”. Os caras ficaram mal… As pessoas
vão para os cursos porque querem aprender uma profissão, experimentar,
viver disso se for o caso. Não têm que ouvir que alguém está ali para
ensiná-las a ter caráter.