O outro lado da famosa FLIP

Programa educativo é o avesso da festa em Paraty

Programa educativo é o avesso da festa em Paraty 
Leda Beck


A Praça da Matriz fervilhou de atividades para quase dez mil crianças de Paraty.

Todo mundo sabe da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP, que traz à pequena cidade histórica da baía de Angra dos Reis uma seleção de elite dos escritores do Brasil e do Exterior e atrai uma multidão de fiéis da literatura universal – além do circo da mídia. Foi assim por cinco dias também neste ano, de 2 a 6 de julho, na sexta edição da festa: como todos os anos, os hotéis da cidade lotaram, os restaurantes lotaram, os bares lotaram, os cibercafés lotaram, os estacionamentos lotaram… E, todo dia, os 20 mil convidados e visitantes, além de uma verdadeira horda de repórteres e fotógrafos, atravessavam o Rio Perequê-Açu em direção à enorme Tenda dos Autores, fora da cidade.


Do outro lado da ponte, a FLIP
atraía os notáveis.
Mas quem é que sabe do que ocorre do lado de cá do rio, no calçamento pé-de-moleque do centro histórico, enquanto espoucam os flashes do lado de lá? Pois do lado de cá uma outra tenda abriga o Programa Educativo Cirandas de Paraty. Este ano, na tenda armada na Praça da Matriz – a Tenda da Flipinha –, 18 renomados autores infanto-juvenis conversaram com centenas de crianças que, por sua vez, levaram ao palco e espalharam pela praça e pelas ruas os resultados de um ano de trabalho conjunto em 37 escolas da região. Alunos, pais e professores paratienses lotavam o auditório da Tenda da Flipinha, enquanto os turistas lotavam a Tenda dos Autores (da FLIP) e a Tenda do Telão (que reproduzia o que se passava na Tenda dos Autores). O movimento da Flipinha começava cedo, todos os dias a partir das 8 da manhã e até às 9, às vezes 10 da noite – foi a FLIP dos habitantes da cidade.


Do lado de cá, jovens paratienses
liam sob 11 "pés-de-livros".
Por que não se fala da Flipinha? Mesmo sua existência é parcamente conhecida fora do restrito círculo dos residentes e dos voluntários da Casa Azul, a organização sem fins lucrativos criada em 1994, que “inventou” a FLIP para financiar seus projetos, inclusive as Cirandas de Paraty. No site da Casa Azul (www.flip.org.br), o texto de apresentação da associação é claro: a Flipinha é  “um dos primeiros, mais queridos e abrangentes projetos” da entidade. Por meio das Cirandas, os voluntários da Casa Azul atuam permanentemente ao longo do ano junto a escolas e instituições pedagógicas locais, urbanas e rurais, incentivando a qualificação do ensino por meio da formação de grupos de leitura, da capacitação de professores e mediadores de leitura, da criação de bibliotecas e da organização de oficinas literárias e artísticas, entre outras atividades. O trabalho realizado pelas crianças ao longo do ano – no caso de 2008, tudo girou ao redor de Machado de Assis, tema da FLIP – é condensado e exposto ao público durante a Flipinha. Em 2008, a Flipinha envolveu quase dez mil crianças paratienses, seus pais e seus professores no palco, no auditório e na praça, onde 11 “pés-de-livros” eram guardados por mediadores de leitura treinados durante o ano como contadores de história.


Uma das oficinas ensinava a
fazer flores de papel, mas
não faltou tempo para ler.
Na Tenda da Flipinha, nove Cirandas de Autores com nomes tão importantes como Luiz Antônio Aguiar, um dos maiores especialistas brasileiros em Machado de Assis, ou Eva Furnari, que está entre as autoras mais populares da literatura infanto-juvenil brasileira, e vários espetáculos de todo tipo atraíram multidões de crianças e adolescentes. O evento também teve inúmeras oficinas de “artes, fazeres e saberes paritienses”, mais de 20 bonecos gigantes de papel machê enfeitando a Praça da Matriz ou circulando com as crianças dentro deles, corais, musicais, peças de teatro, jograis, capoeira e leitura, muita leitura, muita “contação de história” e muita conversa sobre literatura. Mesmo com falhas e amadorismos a granel, o evento teve momentos de glória, como foi o caso das declamações da poeta Elisa Lucinda ou dos musicais concebidos e montados pelas normalistas de Paraty, sob a direção de seu professor de Educação Física e Psicomotricidade, Domício Motta, nos quais cenário e figurinos eram feitos com materiais reciclados. O público aplaudiu de pé em várias ocasiões, as crianças encantaram-se e os autores adoraram a Flipinha – mas se queixaram, com razão, da “pouca visibilidade” do evento.

“Só não fizemos ainda mais porque não temos pernas para correr tudo que queremos”, avalia Gabriela Gibrail, professora de Literatura em Paraty há nove anos e coordenadora pedagógica da Flipinha desde sua primeira edição. A falta de “pernas” é, mais precisamente, falta de dinheiro mesmo: a Flipinha precisa de muito mais gente e de muito mais dinheiro para poder qualificar professores e, sobretudo, envolver os pais durante o ano – o desinteresse da família explica o esvaziamento do evento no sábado e no domingo, quando as escolas não levam as crianças à praça e à tenda. “Precisamos dos empresários”, diz a coordenadora. “Há muita gente no Brasil que está sensibilizada para o problema da educação e que poderia contribuir. Afinal, a literatura é a pedra fundamental da educação – quem sabe ler, não tem problemas nem com matemática.” Outra coisa que também facilitaria muito o trabalho da Casa Azul, acrescenta Gibrail, “seriam políticas públicas de compromisso com a literatura”. Curiosamente, a secretária municipal de Cultura de Paraty também preferiu os holofotes do outro lado do rio e não visitou a Flipinha uma única vez durante a semana.