Opinião – A Daslu e o Camelódromo


Felipe Fonseca*

Nos últimos anos, o
Brasil se tornou referência mundial em iniciativas que usam o software
livre para combater a exclusão digital. O modelo de telecentro foi
adotado em esferas governamentais e do terceiro setor, e milhões de
pessoas tiveram a oportunidade de usar as tecnologias da informação e
comunicação (TIC). Mas para quê? Muitos projetos de inclusão digital
tratam todo o universo de possibilidades sociais das TIC como mera
questão de estar dentro ou fora. Podemos estar nos esquivando da parte
mais interessante do debate: entender de que forma essas tecnologias
podem ser adaptadas para melhorar a vida das pessoas.

Um caminho é a perspectiva de apropriação tecnológica. Enquanto as
pessoas não tiverem consciência de que podem elas mesmas manipular a
tecnologia, a transformação proporcionada por essas iniciativas terá
alcance limitado. Muitos telecentros funcionam como cibercafés
gratuitos: ainda existe a distância entre o pessoal "de dentro" e o
"público". A preocupação é que as comunidades tenham acesso à internet.
Mas pouco se fala que as pessoas não precisam ser apenas usuárias, e
que podem ser co-autores. Se o que buscamos é transformação
sustentável, gerar autonomia é fundamental. Aprender a preencher um
currículo em um editor do texto não traz vantagem a longo prazo para
ninguém. Além disso, é triste ver pessoas que aprendem a digitar, mas
não têm nenhuma familiaridade com o ato de escrever. Sabem usar o
software, até que digitam rápido, mas nada do que escrevem tem alma.
Instigaram seu desejo de fazer parte do seleto clube dos usuários de
computadores, mas não o seu desejo de expressão e de criação.

Muitos coordenadores de projetos esquecem que a comunicabilidade é um
traço marcante da cultura brasileira, com o papo de bar, a fofoca e a
mania de dar pitaco. Aliás, mesmo dentro dos telecentros, o papo de
boteco continua: os brasileiros criaram fama ao usar serviços como o
blogger, o fotolog ou o orkut. E eu já ouvi coordenadores de projeto
perguntando se havia como bloquear o acesso a esses sites. Querem que
as pessoas usem a tecnologia para se comunicar, mas proibir o que elas
fazem de melhor? Ah, certo: um usuário correto deve acessar um portal
de notícias para ver o resultado do jogo ou o que vai acontecer na
novela, e depois preencher seu currículo. Um camelô que tem acesso ao
maravilhoso mundo da internet vai deixar de ser camelô e virar
office-boy, como deve fazer um incluído, certo?

Errado! Por que não pensar em como a tecnologia pode melhorar a vida do
camelô? Por que todo mundo precisa querer ser uma Daslu, catedral,
modelo excludente e baseado em pura competição? Por que esse pessoal
tem tanta vergonha do camelódromo da esquina, ao qual todo mundo vai?
Aliás, a metáfora de Eric Raymond, que opõe a catedral aos bazares para
demonstrar o software livre, pode muito bem ser tropicalizada como "a
Daslu e o camelódromo". A primeira é baseada na centralização do poder,

na competição e na inatingibilidade. O bazar vira camelódromo,
dinâmico, orgânico, vivo e participativo. Como aproveitar as
características culturais brasileiras para obter o máximo das
tecnologias? O primeiro passo é buscar processos voltados às dinâmicas
de mutirão, que existem em qualquer canto, do puxadinho à escola de
samba. Uma proposta seria trocar todos os cursos de editor de texto por
oficinas de weblogs. E estimular as pessoas a usarem a internet para
promover a troca de conhecimentos, ações colaborativas e a mobilização
coletiva.



*Pesquisador do Instituto de Pesquisas
em Tecnologia da Informação (IPTI), coordenador regional do Cultura
Digital em São Paulo e co-articulador da MetaReciclagem.org.