O conhecimento coletivo ocupa as nossas vidas cotidianas e é o que nos faz ser quem somos. É o conhecimento do qual não se pode definir autoria específica. Receitas de culinária ou as formas como construímos nossas casas são resultado de contribuições de muitas pessoas, há anos. Grande parte do conhecimento que nos fez avançar como cultura é, além disso, anônimo: não é possível definir quem foi o autor das nossas histórias populares, dos ritmos tradicionais ou dos usos medicinais das plantas. O anonimato permite que nos apropriemos de forma coletiva desse conhecimento, muitas vezes sem preconceitos acerca das suas raízes, que se perderam no tempo.
O anonimato também é essencial porque há momentos-chave nos quais o medo e a violência determinam qual é o conhecimento válido. Ao longo da história, numerosos grupos de poder determinaram e regularam a informação. O anonimato aparece nesses momentos para dar suporte à resistência, à mudança e à rebeldia das ideias. Por outro lado, também pode ser usado para alimentar más intenções e aumentar a desinformação. Quando são colocadas na balança as desvantagens e vantagens, pode-se ver como a necessidade de expressão sem preconceitos, a disseminação de conhecimento coletivo e a possibilidade de gerar debate livre de ideias são boas razões para defender o anonimato.
As novas tecnologias nos permitiram capturar e compartilhar o conhecimento mais facilmente e aumentar essa coletividade criativa, trazendo cada vez mais grupos e indivíduos de diferentes culturas para a mesa criadora de ideias. Essas possibilidades nos colocam novos desafios: a exclusão, a exploração, a violência, o crime e a injustiça não podem ser vistos como fenômenos sociais sem relação com as tecnologias, e as tecnologias não podem ser consideradas neutras.
Quando trabalhamos o assunto do conhecimento coletivo ligado às novas tecnologias, um dos desafios é como proteger o caráter coletivo desse conhecimento. Outro desafio importante é conservar a capacidade de produzir conhecimento anônimo.
Primeiramente, existe o problema da coletividade. É cada vez mais evidente como, em nível global, os grupos de poder tentam generalizar formas de regular a propriedade do conhecimento. Os modelos de propriedade intelectual globalizados — baseados em direitos autorais comerciais, mais do que em direitos culturais — são os mais restritivos para sua apropriação social. Sob esses modelos, a criação individual tem mais privilégios que a coletiva. Em tempos de copyrights excessivos, o domínio público e a circulação do conhecimento são reduzidos.
Depois aparece o problema do anonimato. Milhares de pessoas escrevem blogs, participam de chats ou de comunidades virtuais. O anonimato se usa para criar, discutir e trocar. Outros usam as mesmas tecnologias para identificar ameaças ao poder hegemônico e rastrear grupos e indivíduos na rede, ou fazer investigações dos nossos hábitos e preferências, em nome da segurança ou do mercado. Alguns utilizam o anonimato das novas tecnologias para cometer crimes, roubar identidades, obter segredos de empresas e invadir a privacidade das pessoas. Sendo esse um assunto tão vasto, o anonimato gerou respostas tecnológicas e sociais muito diversas. Alguns optaram por buscar o fim do anonimato, em nome da segurança, por meio de leis e ferramentas informáticas. Outros geraram ferramentas e iniciativas legais para gerenciar e regular identidades online e a informação pessoal que circula na rede. O foco de outras iniciativas é a maneira como as corporações e os governos usam o anonimato a seu favor. Consideramos que o anonimato apresenta problemas e vantagens. Mas, por enquanto, as vantagens continuam a ganhar.
* Lena Zuñiga é pesquisadora social das Tecnologias de Informação e Comunicação. Este texto foi extraído do livro Além das Redes de Colaboração (Editora da Universidade Federal da Bahia e Casa de Cinema de Porto Alegre).