Cardiogramas digitais e teledermatologia melhoram a vida dos pacientes do interior. Mas a expansão do programa esbarra na burocracia.
Em Maracanaú, todos os postos
de saúde terão webcam.
O Núcleo de Telessaúde do Ceará está no laboratório de informática da Faculdade de Medicina da unversidade federal do estado (UFCE). Em maio, o seu coordenador, o médico Luís Roberto de Oliveira, especialista em cirurgias do pescoço e da cabeça, comemorava a entrada da instituição na rede Gigafor — a rede metropolitana de Fortaleza, projeto da RNP que está instalando fibras ópticas em várias capitais do país. Com isso, explica Luís Roberto, a banda de conexão destinada às atividades de telessaúde saltou de 100 Megabits por segundo para 1 Gbps. Um contraste tremendo para a conexão dos municípios que, em geral, oferecem banda de 256 kbps.
No caso da UFCE, a Rede Universitária de Telemedicina interliga os centros universitários e os hospitais-escolas, e é voltada ao trabalho cooperativo, às comunidades virtuais de aprendizado, aos conteúdos educacionais, mas sem finalidade de atendimento final. Por exemplo, um Grupo Especial de Interesse (do inglês SIM) promove, todo o mês, palestra com um profissional especialista em Dermatologia, no exterior, para oito salas espalhadas no Brasil. As videoconferências são gravadas e publicadas em videostream no Canal Saúde da Fiocruz. “Aviso aos pontos que vai haver a palestra; 48 horas depois, se tiverem interesse, podem acessar o canal usando o equipamento do Telessaúde”, conta Luís Roberto.
A Gigafor, contudo, veio dar suporte veloz ao atendimento das Equipes de Saúde da Família, não via teleconferência, mas pelas webcams dos computadores. No Ceará, o projeto começou em agosto do ano passado, em Baturité. Atualmente, são 15 pontos instalados, e as duas principais ações na teleassistência cobrem telecardiologia e teledermatologia.
“Na teledermatologia, uma professora aqui da Faculdade de Medicina, Tereza Prata, toda semana, e sem ganhar um centavo a mais, dá duas horas de teleassistência para os pontos remotos, que enviam as imagens das lesões pela câmera digital. Estamos fazendo online, mas esperando a adesão de mais profissionais para fazer offline, reunir um número maior de consultas para serem atendidas por especialistas”, diz o coordenador. Na área de Cardiologia, ele ressalta o apoio “memorável” do grupo de telessaúde da UFMG. Nesse caso, as UBSs usam o SameTime, software de comunicação da Lotus, para trocar as informações. O Ceará já produziu mais de 6 mil eletrocardiogramas, e o estado é responsável por um sexto do movimento vindo do programa telessaúde atendido na UFMG.
Como funciona? O paciente está lá, no interior, e quer saber se a dor que sente é ou não um enfarto; ou precisa de um eletro para fazer uma cirurgia, e não dispõe de cardiologista. Às vezes até tem o equipamento, mas não o profissional para assinar o laudo, e ele precisa ir até Fortaleza apenas buscar essa assinatura. Agora, diz o coordenador do núcleo, ele faz o eletro na UBS, o exame é transformado num arquivo digital, o arquivo vai para a UFMG, em Belo Horizonte, onde há um plantão das 8h às 18 horas, envolvendo três instituições federais. Os especialistas analisam e devolvem o exame, usando o SameTime, cuja principal vantagem, na opinião de Luís Roberto, é oferecer encriptação de dados de 128 bits, dando maior segurança e sigilo às informações.
“E podemos orientar o paciente que está passando mal, em uma comunicação em tempo real, via VoIP, via chat, discutir o caso clinicamente com o generalista. Já houve casos de o colega em Belo Horizonte alertar o médico de que o paciente não podia ficar na cidade, o prefeito arrumou um carro para levá-lo ao hospital, e dois dias depois ele estava sendo operado, e salvo”, conta.
O que falta
Sisreg e Gil fazem o controle
dos procedimentos na cidade
Embora entusiasta do projeto, o coordenador não tem previsão de quando vai atingir a meta dos cem pontos instalados. “Há uma série de nuances que fogem de minha resolutividade. Por exemplo, temos todo o restante do kit adquirido para implantar em outros 30 pontos. Mas faltam os 30 eletrocardiogramas digitais, que estão comprados há 60 dias, e esperamos que cheguem.” Segundo Luís Roberto, foram seis meses para vencer a burocracia das exigências legais para a licitação. Depois de feita a compra, era preciso publicar o resultado da concorrência no Diário Oficial. “Esperamos há 60 dias essa publicação.”
O médico conta que alguns secretários municipais propõem assumir, eles próprios, os custos de compra da máquina de tele-eletrocardiograma. Em Maracanaú, a prefeitura comprou não uma, mas duas — para atender cada lado da cidade, cortada ao meio por uma estrada. E está comprando webcams para todas as 25 UBSs. A cidade tem 200 mil habitantes: 120 mil de um lado da estrada (do lado esquerdo de quem vai para a capital), onde está uma UBS, e 80 mil do outro, atendidos por outra unidade.
Este mês, haverá uma videoconferência nacional dos núcleos estaduais, quando Luís Roberto pretende propor maior integração das soluções tecnológicas disponíveis no próprio Ministério da Saúde. “No sentido de trabalhar com os setores de regulação para desfazer o gargalo do atendimento. Por exemplo, ao incluir o Gil (Gerenciador de Informações Locais) e o Sisreg (Sistema de Regulação Nacional) no kit proposto para as UBSs.” Ambos ajudam no controle online de agendamento, na execução e fatura de exames e nos procedimentos em quaisquer unidades do SUS, inclusive clínicas particulares que prestam serviços ao sistema. O primeiro, com instituições locais, e o segundo, em âmbito nacional.
Em Maracanaú, essa integração já acontece. “Na Unidade Básica de Saúde, se o médico pede um raio X, o paciente sai de lá com o exame marcado, data, hora e lugar onde vai ser atendido. Na unidade que vai executar o exame, já estão os dados da pessoa, graças ao cartão nacional de saúde. O paciente leva, com a guia de referência, uma chave numérica gerada pelo Sisreg, que garante que ele foi atendido; e o hospital, de posse dessa senha, dá baixa no atendimento, para o município ter certeza de que pode e deve pagar por aquele serviço”, explica Antônio de Pádua Lopes Pinho, coordenador de tecnologia na saúde, funcionário da Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia, mas atuando, em parceria, para a pasta da Saúde. Um dos interesses da prefeitura é evitar pagar por atendimentos feitos a pessoas de outras regiões. Foram mais de 15 mil consultas, em três meses, marcadas com o Sisreg. Em Maracanaú, há acesso à internet em 28 pontos na saúde, 85 na educação, e em 30 centros de inclusão digital.
O Sisreg e o Gil são fornecidos pelo Ministério. E a cidade pode apresentar um projeto para o Fundo Nacional de Saúde, na área de controle e regulação. A prefeitura de Maracanaú recebeu R$ 215 mil, para formar o Complexo Regulador de Maracanaú, incluindo computadores em sala de atendimento dos médicos, enfermeiros, nas salas de vacinas, etc. As 51 Equipes de Saúde da Família cobrem 91% da população. E a taxa de mortalidade do lugar está abaixo de 13/mil.
O estado de Minas Gerais é um dos pioneiros nacionais em telessaúde. No final dos anos 90, o Laboratório de Iniciação Científica, vinculado à área de informática da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), já tateava o assunto. Em 2001, a atuação da universidade em telessaúde deu um salto quando passou a ser uma atribuição do Núcleo de Tecnologia da Informação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina. Há três anos, a atribuição tornou-se um setor específico do HC, o Centro de Telessaúde, e o hospital começou a estabelecer parcerias com as secretarias de saúde municipal (Belo Horizonte) e estadual.
Assim como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a experiência em telessaúde do UFMG foi também um dos pontos de partida para a elaboração da política nacional da área, concebida pelo Projeto Nacional de Telessaúde (PNT). O Centro de Telessaúde do HC iniciou suas atividades com desenvolvimento de um modelo de telessaúde de atenção primária em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) de Belo Horizonte. O sistema foi implantado em 14 centros de saúde da capital mineira em 2004, por meio do Projeto BHTelessaúde, financiado pela linha @LIS (programa da Comunidade Européia para cooperação com a América Latina em assuntos relacionados à sociedade da informação).
Em 2005, o HC firmou parceria com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais para colocar em atividade o projeto Minas Telecardio, com realização de atendimentos de telecardiologia em 82 pequenas cidades mineiras. Assim foi criada a Rede Mineira de Telecardiologia, coordenada pela UFMG, mas com a participação da Universidade Federal de Uberlândia, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade Estadual de Montes Claros. As instituições agregadas assumiram a responsabilidade pelo atendimento a distância de tele-eletrocardiografia e teleconsultoria aos municípios participantes.
www.telessaude.hc.ufmg.br – Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas
www.minastelecardio.hc.ufmg.br – Minas Telecárdio
Rede Universitária de Telemedicina (Rute) é iniciativa para apoiar projetos em telemedicina entre instituições, mantida pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos, e pela Associação Brasileira de Hospitais Universitários (Abrahue), sob coordenação da RNP.
O trabalho da Rute ocorre em sete etapas: diagnóstico das necessidades existentes, apresentação de propostas, licitação de equipamentos e serviços, assinatura de contratos, implantação da infra-estrutura, teste dos equipamentos e serviços e, por fim, ativação dos hospitais na RNP. A Rute é beneficiada pelo potencial de alcance da Rede Ypê, infra-estrutura de rede da RNP que conecta as principais instituições de ensino e pesquisa do país, e da Rede Clara (Cooperação Latino-Americana de Redes Avançadas), que pode ser definida como a correspondente internacional da Ypê. Hoje, a Rute congrega mais de 60 instituições de ensino, hospitais e maternidades universitários de todos os estados e do Distrito Federal. Além de serviços de comunicação, oferece parte dos equipamentos de TI para os grupos de pesquisa das instituições participantes.
Por meio dos Grupos Especiais de Interesse, os profissionais interligados pela Rute aprofundam-se em temas específicos. Há sete deles em atividade: Toxicologia Clínica; Tele-Enfermagem; Odontologia- Diagnóstico Bucal; Padrões de Telemedicina e Informática em Saúde; Otorrinolaringologia de Cirurgia Cérvico-Facial, Trauma e Ortopedia; Qualidade e Segurança em Hospitais da Rede Sentinela, Medicina e Saúde para Crianças e Adolescentes; e Teledermato. A telemedicina serve a videoconferência médica; os trabalhos colaborativos e o estudo de casos; a capacitação; e a segunda opinião.
www.rute.rnp.br – Rede Universitária de Telemedicina (Rute)
www.rnp.br – Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP)
Renata destaca os cursos online
O Núcleo de Telessaúde de São Paulo lançou, em abril, o Computador da Saúde, que é entregue às Unidades Básicas de Saúde (UBSs) do estado com recursos interativos e vídeos em mídia digital destinados a apoiar o trabalho das Equipes de Saúde da Família (ESF). O acervo trata das visitas domiciliares, de hanseníase, diabetes, câncer de pele, doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), e inclui a série Geração Saúde, seis episódios em DVD feitos em conjunto com o MEC para prevenção de diversas doenças. O Computador da Saúde também vem com módulos do Homem Virtual, objeto de aprendizagem criado na USP para visualização tridimensional do corpo humano, e muitos tutoriais que orientam a usar a internet e o computador (embora trate exclusivamente de sistemas proprietários, como o Windows XP).
Segundo o professor Chao Lung Wen, chefe da Telemedicina da USP, integrante do comitê executivo do projeto de telessaúde e coordenador do núcleo de São Paulo, outros estados, como Amazonas, Ceará e Goiás, também manifestaram interesse em adotar o pacote de conteúdos.
Cada estado tem autonomia para licitar seus equipamentos, mas, em geral, o kit das UBSs vem com computador, impressora, câmera web, máquina fotográfica digital com adaptadores de oftalmoscopia e dermatoscópio, para bater fotos do globo ocular e de lesões da pele, respectivamente. Alguns municípios também recebem um aparelho de TeleECG (eletrocardiograma). O equipamento permite enviar o exame ao Incor, em São Paulo, por internet. Na Faculdade de Medicina da USP, Chao aponta avanços na telessaúde em áreas como Odontologia, Nutrição, Enfermagem, Fonoaudiologia, DSTs e Educação Física. O objetivo, diz, “é qualificar a Equipe de Saúde da Família, a partir de quatro pontos: teleducação interativa (ou educação a distância); segunda opinião formativa (fazer com que o esclarecimento de uma dúvida seja também uma forma de construir o conhecimento do profissional); fornecimento de módulos de vídeo e do DVD Homem Virtual, para palestras e apoio à prevenção; e Biblioteca Virtual de Saúde”. Embora os cem pontos (UBS) em São Paulo já estejam definidos, Chao avisa que os municípios que já tenham computador na saúde podem escrever, solicitando conteúdos digitais.
A Vila Piauí é um pequenino bairro no extremo oeste da capital paulista, com uma configuração espacial muito semelhante à de uma cidade do interior. A Praça Camilo Castelo Branco é o espaço de encontro e convívio, uma espécie de centrinho da vila. E é ao redor dela que estão os prédios mais bonitos do bairro — uma pequena igreja de tijolos aparentes e o prédio verde claro da Unidade Básica de Saúde (UBS) Vila Piauí. Talvez muitos moradores ainda não saibam, mas, já há três meses, os médicos e enfermeiros locais podem se corresponder com especialistas do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e — por que não? — do mundo todo.
As UBSs são a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) para o primeiro atendimento. Parte-se do princípio de que uma atenção básica de qualidade possibilita também uma melhor organização e um funcionamento mais eficaz das estruturas de média e alta complexidade. É por isso que os serviços de telessaúde combinam tanto com os conceitos de UBS e do Programa Saúde da Família, do Ministério da Saúde, que prioriza a atenção básica e dispõe de recursos exclusivos para seu custeio. Com a consultoria de especialistas de centros mais sofisticados, maiores são as chances de diagnóstico e tratamento na própria unidade do primeiro atendimento.
A médica Thaís Almeida Ribeiro do Valle, especialista em saúde da família, afirma que 95% dos pacientes chegam à unidade pelos motivos mais comuns: pressão alta, diabetes, doenças simples, pré-natal e rotinas de prevenção da mulher. Podem ser cuidados ali mesmo. “Hoje, dos outros 5%”, diz, “boa parte ainda pode prosseguir com o tratamento aqui, graças aos recursos da telemedicina”. Se um desses pacientes procurar outra instituição, o tratamento será protelado por ao menos três meses, “sendo otimista”, estima a médica.
A especialidade de Thaís, a propósito, é nova no Brasil – existe formalmente há apenas cinco anos. Já há uma Sociedade Brasileira de Médicos da Família, mas a entidade conta hoje com pouco mais de 500 associados. O Programa Saúde da Família funciona também como um estímulo à especialização de cada vez mais profissionais na área.
A colega Verônica Pilon, também médica da família, considera “ótimo, por sinal”, o novo serviço de telemedicina da UBS Vila Piauí. “Ainda estamos nos adaptando, mas já é claro que o sistema aumenta o grau de resolutibilidade da nossa atuação”, diz. Ela usa a sala de telemedicina principalmente para conversar com especialistas do Instituto do Coração (Incor).
A enfermeira Renata Casagrande Barbosa, sanitarista e também especializada em saúde da família, ressalta ainda a possibilidade de atualização profissional constante que os recursos de telemedicina estão proporcionando aos funcionários da UBS. “Além dos recursos que a simples conexão à internet já permite, como o acesso à Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde, há cursos online no próprio sistema de telemedicina”, disse Renata, enquanto mostrava os temas disponíveis à equipe de ARede: Visita Domiciliar, Diabetes, Ciclo Menstrual, Prevenção de DST’s e Hanseníase. “Estudos mostram que os profissionais mais atualizados são também os mais motivados”, acrescenta a médica Thaís do Valle.
A dona de casa Maíza de Souza, de 34 anos, estava nos banquinhos de espera da UBS com dois de seus quatro filhos, Natália, de quatro anos, e Matheus, de um. A ocasião era de exames de rotina. “Trago meus filhos sempre aqui, seja por doença ou só para acompanhamento. É uma tranqüilidade saber que, em situação de necessidade, mais de um médico pode avaliar o caso da criança”, diz.