Para entender a questão da neutralidade da rede

Artigo publicado no jornal espanhol El País explica porque a neutralidade da internet deve ser considerada um direito civil do século 21.

12/05/2010
Do El País

Pedro Martinez, fiscal do Tribunal Superior de Justiça de Madri, publicou ontem no jornal espanhol El País um artigo sobre a importância do princípio de neutralidade na internet. No texto, ele fala da neutralidade da internet como um direito civil do século 21. O tema está em debate nos Estados Unidos e na Europa e, apesar de parecer eminentemente técnico, é de fundamental importância para garantir direitos iguais a todos os usuários da internet. Veja porquê:

“A neutralidade da rede ganhou as primeiras páginas nos debates atuais sobre a internet tanto nos Estados Unidos quanto na Europa porque as grandes empresas de telefonia e cabo se deram conta de que seu modelo de negócio melhoraria se elas pudessem controlar o acesso às infraestruturas das redes de telecomunicações, cobrando uma taxa em função da largura de banda consumida, como a chamada taxa Google, e oferecer níveis de serviço a seus clientes. Essas empresas justificam isso pelo que consideram um uso extensivo de suas infraestruturas e pelo ritmo crescente da demanda de serviços de banda larga que, segundo os especialistas, vai provocar um colapso na infraestrutura da internet.

As reivindicações dessas empresas ameaçam a neutralidade da rede, um dos proncípios básicos sobre os quais a internet foi construída e que determina que a rede seja igual para todos, sem discriminação alguma, e se aplica a todos os pacotes de dados que circulam por ela o mesmo tratamento, independente de seu conteúdo, de sua origem ou destino, sem que haja prioridade nem hierarquia de uns sobre outros, sem que ninguém tenha acesso preferencial.

Se for cobrada uma taxa, as ferramentas de busca e as grandes empresas não terão problemas para pagar o que lhes pedirem (afinal, quem pagará seremos nós, os usuários) e vão ter prioridade no acesso a seus conteúdos, mas as empresas com menos recursos não poderão competir em igualdade de condições. Além disso, os serviços que possam competir com o dessas empresas, como o de telefonia IP, ou causem problemas, serão relegados a canais mais lentos ou, simplesmente, eliminados.

Tudo isso torna a neutralidade da rede algo mais que uma controvérsia entre usuários, operadoras e emnpresas de conteúdo e ganhe uma dimensão política como corresponde lhe corresponde nessa sociedade da informação, até o extremo de surgir na campanha eleitoral de Obama, na qual ele não apenas afirmou seu compromisso de manter a internet como ela deve ser – aberta e livre -, mas também teve uma presença ativa nas redes sociais, o que contribuiu ao inegável êxito à área de comunicação de sua campanha, baseada em três princípios: comunicação, transparência e participação.

Nos Estados Unidos, a Federal Communications Commission (FCC, agência reguladora do setor de telecomunicações) estabelece quatro princípios em que se fundamenta a neutralidade da rede: 1º) Liberdade de acesso a conteúdos 2º) Liberdade de uso de aplicações 3º) Liberdade de conectar dispositivos pessoas não nocivos 4º) Liberdade de obter informações sobre os planos de serviços. Agora, o novo diretor da FCC, Julius Genachowski, em consequência aos compromissos assumidos pela administração Obama, propõe acrescentar mais dois princípios: 5º) Impedir a discriminação por tipo de conteúdo e 6º) Os provedores devem ser transparentes sobre sua política de gestão de redes. Em sintonia com as preocupações da indústria cultural, esses dois novos princípios só seriam aplicáveis quando não interferirem com os direitos de autor ou promoverem atividades ilegais.

Apesar disso, todo esse emaranhado de princípios pareceu desabar quando, em 4 de março de 2010, uma sentença do Tribunal de Apelações dpo Distrito de Columbia, no “caso Comcast”, afirmou que a FCC não tem autoridae para sancionar a Comcast por haver levado a cabo práticas de discriminação de tráfego em sua rede. Mas, na realidade, a sentença se limita a ressaltar a necessidade de una norma legal que reconheça o princípio da neutralidade para que ele possa ser garantida judicialmente, o que não pode ser feito por meio de meras declarações institucionais.

Na Europa, a questão também foi colocada pela Telefónica e pela Vodafone, e a Comissão Europeia anunciou que vai iniciar antes do verão naquele continente um debate público sobre a neutralidade da internet. Até agora, na reunião entre ministros europeus de telecomunicações e sociedade da informação realizada entre os dias 18 e 20 de abril em Granada, que se encerrou com a Declaração para a Agenda Digital Europeia, faz uma alusão à neutralidade da rede mas se limita, como em outros temas espinhosos, a apresentar linhas gerais de atuação, sem definir medidas específicas e remetendo a questão a uma futura Carta de Direitos do Usuário de Comunicações Eletrônicas.

Em pleno século 21, a internet é demasiadamente importante para ser deixada nas mãos das operadoras e a neutralidade é essencial para preservar nossas liberdades no novo modelo social de cidadãoes em rede, por isso é necessário que, sem impor uma governança da internet, se reconheçam uma série de direitos básicos para garantir determinados âmbitos de autonomia frente ao poder, tal e qual foram configurados os direitos civis no século 18, com a diferença de que hoje o poder está passando para as operadoras e grandes empresas de conteúdo.

Pedro Martínez es fiscal del Tribunal Superior de Justicia de Madrid.”