Patentes contra a vida


Wilken Sanches*


Por muito tempo, foi atribuído à ciência o papel de força emancipadora
da humanidade. Ela seria a responsável por livrar o homem do
obscurantismo, do trabalho penoso, da fome e das doenças. Para
estimular o desenvolvimento dessa força libertadora, foram criados
mecanismos de estímulo à pesquisa, entre eles, as leis de propriedade
intelectual e patentes. Dessa forma, sempre que algo novo fosse
inventado, seria concedido o monopólio da exploração comercial daquele
invento, por um período socialmente justo.

O período de proteção deveria assegurar o monopólio sobre a exploração
do invento tempo bastante para garantir o estímulo à pesquisa, mas não
a ponto de prejudicar os interesses da sociedade. Depois disso, o
invento deveria entrar em domínio público, para que pudesse ser
utilizado como base de novas pesquisas. Esse equilíbrio, contudo, vem
se tornando cada vez mais difícil, uma vez que a ciência foi
abandonando o seu caráter emancipador para se converter, unicamente, em
força produtiva do mercado.

Em 1994, durante a Rodada do Uruguai do Gatt (Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio), foram dados passos importantes para garantir um
estatuto jurídico internacional que assegurasse a privatização dos
objetivos da ciência, entre eles, o Acordo Sobre Aspectos dos Direitos
de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ou Trips).
Enquanto todos os acordos da rodada caminharam para a quebra de
barreiras e diminuição de direitos e garantias dentro do comércio
internacional, o Trips foi na direção contrária, aumentando proteções e
impondo barreiras.

Mesmo tendo sido criados alguns “gatilhos”, que poderiam ser acionados
quando fosse detectada alguma prática anticompetitiva ou abuso do poder
econômico por parte dos donos da propriedade intelectual, os principais
favorecidos pelo Trips foram, sem dúvida, os países desenvolvidos, que
já tinham um grande número de patentes. Um dos resultados práticos
dessa política de privatização do conhecimento pode ser visto quando a
preservação da vida é posta em xeque. No início de novembro, o Brasil
propôs que a Organização Mundial da Saúde enviasse técnicos aos países
emergentes para a análise da possível quebra de patentes, em
conformidade com o artigo 31 do Trips, para garantir às populações
desses países acesso a medicamentos de combate a AIDS, câncer e
diabetes.

A proposta brasileira previa, ainda, a criação de um fundo para 
pesquisa de doenças que atingem apenas países subdesenvolvidos, além de
solicitar que acordos comerciais entre países ricos e pobres não
incluíssem leis de patentes mais rígidas que as já existentes no
sistema internacional. Por motivos óbvios, a proposta enfrentou o forte
lobby dos EUA, que enviou cartas aos países latino-americanos, pedindo
que retirassem o apoio à proposta do Brasil, dizendo que ela atrasaria
um possível acordo.

Casos como esses nos fazem ver o quanto a ciência tem se afastado da
sua missão. Os laboratórios preferem ver os mortos se amontoarem nos
países subdesenvolvidos a deixarem de receber os royalties de sua
pesquisa, e mesmo quando se prova a insustentabilidade dessas
situações, os países desenvolvidos enviam cartas em tom de ameaça para
que os gatilhos legais não sejam acionados. Mais do que nunca,
precisamos rediscutir a questão da propriedade intelectual e o papel da
ciência, em uma sociedade em que se socializam os riscos de
contaminação da água, do ar e do solo, e se privatizam os lucros.


*Diretor geral do Coletivo Digital e baterista da banda Ácido Lático. É mestre em Antropologia, pela PUC-SP.