A sociedade discute o que deve ser a nova emissora pública, proposta pelo governo federal.
Lia Ribeiro Dias e Verônica Couto
Antena da TV Cultura, em SP.
Com o apoio de todas as emissoras do campo público — educativas,
universitárias, legislativas e comunitárias —, expresso no “Manifesto
pela TV pública independente e democrática”, lançado no I Fórum das TVs
Públicas, realizado em maio, em Brasília, o governo federal vai colocar
no ar a TV Brasil (nome ainda não oficial). A largada para o processo
está programada para agosto.
O novo canal da TV pública federal começa com uma programação única a
ser exibida pela TV Nacional, de Brasília, e pela TVE, do Rio de
Janeiro e do Maranhão, enquanto o figurino jurídico, a ser proposto
como projeto de lei ou medida provisória, é discutido e aprovado
no Congresso Nacional. Se ainda há indefinições sobre a TV Brasil —
desde operacionais até financeiras —, o grupo de trabalho encarregado
da tarefa já concluiu que a nova rede terá quatro horas diárias de
programação local, além de espaço para produção independente, e deverá
consumir R$ 350 milhões por ano, orçamento superior ao da Rede TV.
Também está sedimentado o conceito sobre o qual vai ser construída a
nova TV pública federal, resultado da fusão da TV Nacional e da TVE:
será um instrumento de universalização dos direitos à informação, à
comunicação, à educação e à cultura; expressão das diversidades sociais
e culturais do país; autônoma em relação ao governo e ao mercado; e
será gerida por um órgão colegiado deliberativo, representativo da
sociedade.
As crianças assistem a quatro
horas/dia, em média, de TV.
Dados da Abepec, entidade de
TVs públicas.
A expectativa das emissoras do campo público é de que a TV Brasil ajude
a ampliar e fortalecer, de maneira horizontal, as redes já existentes.
A começar com a troca de programação, processo já existente e que será
intensificado. A definição do modelo de financiamento e de gestão
também vai ajudar a estabelecer parâmetros para as demais emissoras,
que padecem, mais do que da falta de recursos, de problemas de gestão,
dependência política de governos, e suas conseqüentes mazelas, como
inchaço do quadro de pessoal, falta de profissionalismo, deficiência de
infra-estrutura. A criação da TV Brasil, como ficou claro durante os
quatro dias do fórum, abriu uma nova perspectiva para todas as TVs do
campo público que, desde o ano passado, vinham repensando o seu papel,
dentro de um calendário de discussões organizado pelo Ministério da
Cultura para preparar o evento de maio.
Há dez anos, quando concluiu seus estudos sobre o modelo de televisão
inglês, que conta uma tradicional e importante emissora pública, a BBC,
o jornalista e sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho, professor de
pós-graduação da USP e da Cásper Líbero, tinha muita dificuldade em
encontrar, no Brasil, uma platéia mobilizada para o tema. Falar em
modelo de televisão pública independente e autônoma, recordou Lalo em
sua intervenção no I Fórum de TVs Públicas, era bater em uma tecla, na
qual quase ninguém, a não ser uma reduzidíssima minoria, estava
interessado. “Uma década não é muito tempo. E hoje estamos aqui
construindo um novo modelo de televisão pública que não seja, como
sempre ocorreu no Brasil, subalterno à TV comercial”, disse Lalo.
TV Roc, da Rocinha: raro modelo
de TV paga com inserção
comunitária.
O que mudou nesse período foi, de um lado, a entrada em cena da
tecnologia digital e, de outro, a partidarização da mídia no Brasil,
que, nas eleições presidenciais de 2006, atingiu o ápice de sua falta
de compromisso com o registro acurado dos fatos e aderiu, quase toda
ela, à editorialização do noticiário. A tecnologia digital foi um marco
importante, pois, desde que se iniciou o debate sobre que padrão
tecnológico e modelo de negócios o país deveria adotar para a TV
digital, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a democratização
dos meios de comunicação ganhou um lugar na mesa de discussões. É
verdade que essa bandeira era empunhada apenas pela comunidade
acadêmica e por entidades ligadas à defesa da democratização das
comunicações. Mas surgiu com um certo vigor e envolveu, também, o
movimento das TVs públicas.
A derrota sofrida pelo movimento, em 2006, na definição do padrão
japonês (com a incorporação de dois desenvolvimentos nacionais) para a
TV digital e do modelo de negócios, quando os radiodifusores saíram
vitoriosos, não significou uma desarticulação total. Foi em cima da
mobilização conquistada na discussão da TV digital que o MinC organizou
o I Fórum Nacional de TVs Públicas, preparado ao longo de nove meses
por grupos temáticos, que produziram dois relatórios (no site
do MinC). Um com o diagnóstico dos diferentes segmentos das emissoras
do campo público, outro com o resultado das discussões do grupos.
A importância da TV digital
E por que a tecnologia digital é tão importante para alterar o cenário
das emissoras do campo público? Parte da resposta está no discurso do
ministro Gilberto Gil, na abertura do fórum: “É preciso olhar de frente
e permitir que todos os brasileiros aproveitem a novidade da
convergência digital, que vai unir radiodifusão e telefonia. Isso tem
implicações culturais, legais e estratégicas para o Brasil. Para
aqueles brasileiros que têm acesso à internet, para os que usam o
celular como câmeras que flagram na rua o que a TV já não consegue
captar, a televisão digital já é uma realidade. Para os jovens que
fazem seu filme em rede, para os que divulgam e fazem sua livre
programação, para os que podem navegar entre centenas e milhares de
escolhas de conteúdos, um novo estágio de democracia e de direitos
culturais já chegou e é preciso ampliá-lo. A televisão digital que
vemos se expandir pela internet é uma televisão de acesso diferenciado,
de interação radical, lugar de baixar e subir conteúdos, uma televisão
de troca. Isso quer dizer que vamos precisar de uma televisão pública
que dialogue e pratique as muitas possibilidade reais que a internet já
oferece.”
A TV digital não é só uma melhora substancial na qualidade da imagem.
Ela traz o que o ministro Gil destacou no discurso: a possibilidade de
interatividade, o que a aproxima do mundo da internet. Essa
interatividade, por enquanto, ainda é restrita, depende do canal de
retorno, mas pouca gente arrisca a dizer o que teremos pela frente. Não
se sabe o que é, mas será uma mudança radical. Ao lado dessa mudança de
paradigma, pois o telespectador deixa de ser um passivo consumidor dos
programas, a TV digital permite multiprogramação — colocar até quatro
canais em uma faixa de 6 MHz —, o que abre espaço para mais emissoras e
desenvolvedores de conteúdo. E possibilita que o espectro seja gerido
pela figura do operador de rede, de modo a otimizar sua utilização e
compartilhar custos.
Na definição da TV digital brasileira, as teses da multiprogramação e
do operador de rede foram derrotadas, mas não estão proibidas. Tanto
que foram resgatadas nos debates do fórum. E o manifesto final traz
entre suas propostas:
construção de uma infra-estrutura técnica, pública e única, que
viabilize a integração das plataformas de serviços digitais por meio de
um operador de rede;
• a TV pública considera que a multiprogramação é o modelo estratégico para bem realizar sua missão;
• a TV pública deve se destacar pelo
estímulo à produção de conteúdos digitais interativos e inovadores,
apoiando a continuidade das pesquisas com vistas à criação de softwares
que visem à interatividade plena.
Partidarização da mídia
Estúdio do Programa "Cidadania
para Todos" da TV Mackenzie (SP).
Se é verdade que o debate da TV digital promoveu maior compreensão do
papel fundamental, na formação crítica do cidadão, que a TV pública
pode ter nessa nova fase, também é verdade que o tom da cobertura, pela
maioria da mídia, da campanha eleitoral de 2006, a menos isenta e a
mais editorializada dos últimos anos, despertou a atenção do governo
Lula para o cenário dos meios de comunicação no país. A decisão de
fortalecer o campo público da televisão, a partir da fusão da TV
Nacional e da TVE para criar uma emissora nacional forte e
independente, tornou-se uma das prioridades do segundo mandato de Lula.
Nesse contexto, o I Fórum Nacional das TVs Públicas ganhou nova
dimensão. Na sua abertura, estiveram presentes quatro ministros —
Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social (Secom);
Gilberto Gil, da Cultura; Fernando Haddad, da Educação; e Luiz Dulci,
da Secretaria Geral. E o presidente da República participou do seu
encerramento, ocasião em que defendeu a necessidade de as emissoras
públicas primarem por uma programação de qualidade. Mas, ao contrário
do que chegou a suspeitar a mídia quando o governo anunciou a criação
de uma Rede Nacional de TV Pública, a TV Brasil não será uma emissora
estatal. Tanto que o grupo encarregado da fusão das duas emissoras
ainda estuda o que fazer com a NBR, que é a TV estatal vinculada à
Radiobrás, transmitida só via emissoras de cabo. “Há um debate, se ela
deve ser levada para a Secom, ou se, com a transferência de parte de
suas atribuições para a TV Brasil, ela terá razão de existir”, comenta
Eduardo Castro, assessor especial do ministro Franklin Martins e
titular da secretaria executiva de rádio e TV pública. A hipótese em
debate é que a TV Brasil prestaria serviços remunerados para o governo,
como cobertura de pronunciamentos e viagens do presidente, como a TVE
presta serviços ao MEC, com a produção da TV Escola.
Embora essa questão esteja em aberto, o ministro Gilberto Gil, em seu
discurso no fórum, colocou-se como o porta-voz do governo na distinção
entre público e estatal. “O que difere a televisão pública da estatal é
que a primeira é definida pelo público, e a segunda, pelo Estado.
Queremos uma TV pública plural, definida e apropriada pelo público, que
reflita a diversidade de nosso país.”
Já se sabe que a TV Brasil precisará de um orçamento anual da ordem de
R$ 350 milhões. Parte dos recursos virá do orçamento da União, e parte,
de outras fontes. Entre elas, os fundos setoriais. O grupo de trabalho,
segundo o ministro Franklin Martins, analisa os fundos dos ministérios
da Cultura, da Ciência e Tecnologia, e das Comunicações. Outra opção é
alocar fatia dos impostos já recolhidos sobre equipamentos
audiovisuais, como os televisores, para a TV Brasil. “Estamos na reta
final da definição”, dizia, no início de junho, Eduardo Castro,
destacando que o governo não vai lançar mão de novo imposto para formar
o fundo de financiamento da TV pública federal.
Cenário do Programa "Cidadania
para Todos" da TV Mackenzie (SP).
Se faltam recursos para a emissora federal, que dirá para as demais
emissoras do campo público, especialmente as educativas ligadas a
estados, muitas universitárias e as comunitárias (sem fonte de
financiamento definida). No fórum, Antônio Achilis, da Rede Minas,
defendeu como principal fonte de financiamento para as educativas o
orçamento público. Isso não significa que defenda o status quo.
“O que sustenta a boa TV pública é a qualidade de programação e gestão.
À exceção da TVE e da TV Cultura (SP), as demais só têm momentos de
excelência. Temos de mudar esse quadro”, afirmou. A baixa qualidade da
televisão brasileira — ressalvadas as ilhas de excelência — é objeto de
pesquisa da Fundação CPqD no âmbito dos estudos da TV digital. Cosette
Castro, uma das pesquisadoras, destaca o avanço do tele-evangelismo,
mesmo nas emissoras públicas, e a rara presença do cinema brasileiro na
TV aberta (veja o quadro na página 12).
Depender só de recursos do Tesouro é um risco, na avaliação de Ottoni
Fernandes, sub-secretário de publicidade da Secom. Ele até reconhece
que os recursos orçamentários podem ser a espinhal dorsal de
sustentação das emissoras públicas vinculadas a governos, mas acredita
que seus gestores devem buscar outras fontes, até para garantir sua
independência. Como fontes alternativas, citou patrocínios de empresas
públicas e privadas, caminho já percorrido pelas duas emissoras
públicas de maior prestígio, e venda de serviços para terceiros.
Destacou que o determinante para o sucesso dessas captações de recursos
fora do orçamento é, justamente, a qualidade da programação.
Aliás, esse é um consenso tanto nos documentos preparatórios como nos
debates do fórum. Mas produzir programação de qualidade custa caro. Por
isso, vários debatedores defenderam, durante o evento, que as emissoras
busquem parte da programação entre produtores alternativos. E, hoje, já
há caminhos para financiar a produção audiovisual independente. O BNDES
tem uma linha voltada ao fomento da cultura, além de iniciativas do
MinC e da Ancine (veja a página 18). Fora isso, as emissoras públicas
querem que o BNDES, a exemplo do que fez para as TVs comerciais, crie
uma linha específica para atendê-las no seu processo de digitalização
dos sinais. Além de usarem e abusarem da produção independente e
regional na programação, as emissoras públicas devem trabalhar mais em
conjunto, inclusive trocando programas. Duas iniciativas nesse sentido
vêm sendo desenvolvidas pelas TVs universitárias (veja a página 16).
Emissoras do campo público
Universitárias 73
Legislativas 79
Comunitárias 70
* As emissoras educativas são geradoras, com 1560 retransmissoras
próprias, 88 geradoras afiliadas e 218 retransmissoras afiliadas, num
total de 1.885 emissoras.
Fonte: Caderno de Debates – Diagnóstico de Campo Público de Televisão – www.cultura.gov.br – No menu à esquerda, clique para I Fórum Nacional de TVs Públicas.
A gente não se vê por aqui
Uma análise da programação da televisão brasileira aponta
baixíssimo aproveitamento da produção nacional, seja na TV aberta, na
TV paga, e até nas TVs públicas (educativas, universitárias ou
comunitárias), embora, nessas últimas, o produto independente ainda
tenha maior presença. Com exceção das telenovelas, predomina nas TVs
comerciais a não-ficção, principalmente telejornais, programas de
auditório ou religiosos — o tele-evangelismo cresce como grande
tendência. O diagnóstico é detalhado na “Cartografia Audiovisual
Brasileira de 2005 – Um estudo quali-quantitativo de TV e cinema”, das
cinco regiões do país, que está no site do CPqD dedicado ao Sistema
Brasileiro de TV Digital.
O estudo abordou também o cinema. Na semana analisada, de 5 a 11 de
novembro, não houve oferta de filme nacional. O vácuo já havia sido
constatado em outro estudo — “A transmissão de filmes brasileiros na TV
aberta nacional (1980-2000)”, de Antonio Andrade e Sandra Reimão,
citado no levantamento: segundo esses autores, nos 21 anos do período
estudado, foram exibidos 680 filmes nacionais, ou 1.957 transmissões,
se contadas as reprises. Ou um único filme, a cada dois dias.
Nas TVs pagas, de acordo com a Associação Brasileira de TV por
Assinatura, só 5% da programação têm origem nacional. Segundo a
Cartografia, na programação de quatro meses da Net, de 6.053 filmes,
442 (7,3%) eram brasileiros. Por outro lado, a pesquisa localizou, só
no Rio Grande do Sul, 53 documentários e 126 filmes em produção ou
finalização, à espera de distribuição, em 2005.
Cosette Castro, doutora em Comunicação e uma das pesquisadoras,
destaca, ainda, o avanço do que chama de tele-evangelismo. As quatro
emissoras comerciais ligadas a grupos religiosos (Record e TV Mulher,
às igrejas pentecostais; e TV Vida e Canção Nova, à Igreja Católica)
têm cabeça-de-rede em São Paulo e transmitem para todo o país. “E o
fenômeno do tele-evangelismo está virando fonte de renda para outras
emissoras comerciais, até então laicas, que estão vendendo espaço para
grupos religiosos”. Cita, nessa categoria, a Bandeirantes, a CNT e a TV
Gazeta. Mesmo nas educativas, os programas religiosos (principalmente
católicos) só não estão na educativa do Rio Grande do Sul. E quase
todas as comunitárias vendem horário para programas evangélicos.
A ênfase das TVs comerciais está na produção jornalística — mais
barata, fácil de produzir e de vender. À exceção da Globo e da Record
(em menor medida), basicamente não há criação ficcional. A produção
própria é marcada por atrações musicais, no modelo de programas de
auditório. De acordo com Cosette, “as afiliadas da Rede Globo e do SBT
pouco produzem em termos locais, pois a cabeça-de-rede concentra
praticamente toda a programação de entretenimento”. Por isso, o
documento recomenda “mecanismos de controle para garantir que a
produção de conteúdos não fique centralizada”.
Na TV pública, continua a pesquisadora, o estudo detectou
preocupação maior com aspectos culturais e conteúdo nacional, mas a
produção local é restrita, devido à falta de recursos. Por isso, as TVs
educacionais estatais usam principalmente programações da TV Cultura e
da TVE. A pesquisa começou a ser feita em dezembro de 2005, e reuniu,
durante dois meses, 35 pesquisadores.
http://sbtvd.cpqd.com.br — Cartografia Audiovisual Brasileira de 2005. É preciso se cadastrar.
Bons exemplos
Cena do vídeo "O Bilhete", de
Letícia Tonon (Santa Gertudes/SP),
realizado na segunda edição do
Revelando os Brasis
A Cartografia Audiovisual Brasileira de 2005 aponta dois projetos
bem-sucedidos de apoio à produção local. O Revelando os Brasis, do
Ministério da Cultura, e o Doc TV, também do MinC, em convênio com TVs
públicas. No primeiro, um concurso seleciona 40 histórias enviadas por
moradores de municípios com até 20 mil habitantes. Os autores
participam de oficinas para que possam gravar, nas suas cidades, o que
contaram. E os vídeos são veiculados na TV Futura, em exibições
abertas, e lançados em DVD (patrocínio Petrobras). O Doc TV, por sua
vez, seleciona documentários para exibição nas emissoras parceiras. Em
três edições do programa (74 concursos estaduais), foram produzidos 114
documentários ou 3.026 horas de programação. O modelo está sendo
replicado no México, na Colômbia e na América Central, além de 15
países integrados à Comunidade Cinematográfica Íbero-americana.
www.revelandoosbrasis.com.br