‘O computador é uma máquina de experiências’
A professora gaúcha aposta na produção do conhecimento pelo aluno. PATRÍCIA CORNILS
ARede nº53 novembro de 2009 – O caminho do conhecimento é diferente do caminho da memória. Depois de se dedicar, durante duas décadas, a aprender como as pessoas aprendem, a professora Léa Fagundes fundamenta, com esta distinção, sua militância pela mudança completa da escola como conhecemos. A escola da era industrial, criada para educar em massa, como uma linha de produção, trata os alunos como se fossem todos iguais, passivos, meros receptores de informação. Nada mais distante de aprender. “Toda ciência que não posso aprender lendo, não posso ensinar lendo”, diz ela. Nem esperando que os alunos memorizem e repitam o que ouvem. “Tenho que aprender fazendo.” O caminho do aprendizado – fisicamente, pelos neurônios do cérebro humano – é feito de maneira distinta e menos volátil do que o da memória.
Léa Fagundes, 79 anos, estuda os processos humanos de aprendizagem com base nas pesquisas de Piaget (biólogo que se dedicou a entender como o ser humano constrói conhecimento científico). Ao mesmo tempo, durante quase quatro décadas, ela se dedicou a e ensinar. “Dei aula pela primeira vez na vida aos dez anos, para uma mocinha de 15”, conta. Sua experiência de educadora é costurada à sua trajetória de aprendizado. A não distinção entre aprender e ensinar é outro de seus fundamentos pedagógicos. A professora Léa tem sete filhos e também aprende com eles. “É uma beleza, um campo de pesquisa”, sorri.
A hierarquia escolar também é antiaprendizado. “O problema da relação ensinar-aprender é que o professor é formado para ensinar”, disse ela certa vez, em uma palestra. “O professor é uma pessoa que acredita que foi ensinado, acredita que a responsabilidade dele é ensinar o que ele sabe. A sociedade não sabe o principal: o professor não precisa saber ensinar, tem que saber aprender para ajudar os alunos a aprender.”
Para Léa Fagundes, este longo processo de aprendizado incluiu graduação em Pedagogia e em Psicologia, com mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em Ciências-Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Tudo isso levou a professora a defender – antes do PC, antes do Windows – o uso de computadores como instrumentos de educação.
Os computadores são máquinas de aprender porque permitem, a cada aluno, provocar experiências, observar experiências, interferir nelas e compartilhá-las com outras crianças e com os professores. Diz a professora Léa: “Para Piaget, há os observáveis do aluno, do sujeito, e os observáveis da coisa, do fenômeno, do objeto observado para aprender. Entre um e outro tem que haver interação para aprender. Na interação, bota-se significado para tirar. Se você não põe, não tira. Nesse sentido, todas as mídias só ajudam se houver interatividade dos alunos. O aluno não aprende olhando a mídia, ouvindo a mídia, pois não é a percepção que dá o conhecimento. A apresentação não é a forma de retirar conhecimento, tem que construir, botar conhecimento, ler a resposta do objeto e assimilar reconstruindo. Nesse sentido, mídias integradas, multimídias, telas lindas, filmes lindos, objetos de simulação detalhados para observação não favorecem a aprendizagem.”
O Laboratório de Estudos Cognitivos(LEC/UFRGS), coordenado por Léa Fagundes, foi responsável pela experiência-piloto do programa Um Computador por Aluno (UCA), do Ministério de Educação (MEC), em Porto Alegre. Realizadas em mais cinco cidades do país, as experiências com os laptops geram massa crítica, diz ela, para mudar o modelo educacional brasileiro, mesmo quando ele usa tecnologias da informação e comunicação mas, coerente com a escola da era industrial, privilegia o uso de laboratórios de informática nas escolas.
Nos laboratórios, pode-se realizar belas experiências de aprendizado, explica, mas eles não dão conta de um fato simples e difícil de incorporar, na escola como é hoje: o aprendizado é uma experiência pessoal e envolve, além do interesse do aluno pelos objetos pesquisados, a possibilidade de fazer experiências, um tempo que supera a tradicional aula de 50 minutos, e uma articulação de conteúdos hoje fragmentados em diversas matérias do currículo. O aprendizado precisa incorporar o erro, as experiências que não dão certo. Ao usar seu próprio computador, sua máquina de experiências, o aluno caminha neste sentido.
Com os laboratórios, a informática se torna uma disciplina a mais na grade curricular, mas não produz inovação pedagógica. E esta inovação é a razão de ser do trabalho da professora, há quase quatro décadas. O tempo, diz ela, é outro fator fundamental para realizar mudanças grandes com esta, a de toda uma cultura sobre o que é a escola. Por isso, ela se incomoda com as experiências com computadores para educação em que há exigência de resultados mensuráveis e rápidos. Isto, diz, só faz sentido para os governantes, preocupados em se eleger e reeleger, e para a indústria de tecnologia, que quer vender produtos e serviços. Mas não tem nada a ver com educação.
Os resultados são de longo prazo, “o tempo da germinação da semeadura”. Mas acontecem. Professores formados em educação à distância desde 1995, em todo o Brasil, serão agora os principais articuladores da experiência do UCA em 300 escolas. A professora Léa é assessora do MEC no projeto, além de ter formado mais de uma geração de pesquisadores no uso da informática na educação. “Essas pessoas me escrevem, me ligam, e dizem ‘olha, estamos prontos’.”
Há uma comunidade em condições de fazer com que a experiência do UCA, em um universo limitado a 300 das 50 mil escolas públicas do país, produza mudanças na educação brasileira. No final de novembro, oito grupos de trabalho do UCA vão se encontrar em Brasília para iniciar o processo de aprendizado, multiplicação e formação de equipes nos estados. As universidades dos estados vão participar desta articulação, acompanhando as experiências nas escolas. “As mais tradicionais vão privilegiar o conteúdo digital pronto e não o produzido por alunos e professores, nos ambientes de interação”, prevê ela. Mas a mudança já é um dado de realidade: ainda que a escola tradicional resista, as pessoas sempre serão protagonistas da sua busca por conhecimento. E a alegria e a criatividade das crianças com seus laptops, multiplicada pela internet, a partir dessas 300 escolas, será mais uma semente, poderosa, para revolucionar talvez o próprio país – não apenas o ensino.
Foto: LEC/UFRGS