Entrevista Hernani Dimantas e Drica Guzzi – Projetos em Rede



Hernani Dimantas e Drica Guzzi


Projetos em Rede

Drica Guzzi e Hernani Dimantas
coordenam o Laboratório de Inclusão Digital e Comunicação Comunitária (Lidec), na Escola do Futuro, da Universidade de São Paulo (USP). Trabalham para incorporar, nas políticas públicas de inclusão digital, o uso da tecnologia para a transformação social. Uma das mais revolucionárias possibilidades criadas nesse sentido é a de produzir e circular conhecimentos em rede, coletivamente. Transformadora por si só, a rede – não só a internet, mas qualquer rede – está no centro das pesquisas do Lidec. “Inclusão digital precisa envolver também a produção e a indicação de conteúdos de qualidade em português, assim como processos de produção colaborativa, que abrem portas para que os usuários assumam o protagonismo no mundo digital, mais do que o simples domínio da tecnologia”, diz um texto no site do laboratório. O Lidec produz conteúdo online e é responsável pela capacitação dos monitores do Acessa SP, programa do governo paulista. Sua meta é criar novos usos nos postos do Acessa. Uma dessas ações é a Rede de Projetos, que estimula os usuários a desenvolver iniciativas em rede.


ARede
– O Acessa SP é qualitativamente diferente de outros projetos de inclusão digital? Em que sentido?
Drica – A missão do Acessa é oferecer acesso gratuito à internet, facilitar o uso dos serviços de governo, contribuir com a construção da participação pública, a construção do conhecimento, a colaboração. Tudo o que a gente faz tem de ter um reflexo dessas diretrizes.
Dimantas – O que interessa, na verdade, é como as pessoas podem trabalhar em uma democracia participativa. Será que tudo isso de que a gente fala, internet, wikipedia, blogs, twitter, vai modificar, na ponta, a participação pública? Não. A ferramenta é só uma ferramenta. Ontem era chat, hoje é twitter, vai mudando. As pessoas precisam aprender como é participar. O que nós queremos com um projeto de inclusão digital? O foco é a participação pública, essa é a nossa missão no Acessa: estar envolvido nesse processo.
Drica – Existe uma enorme diversidade de público nesse programa. Desde 2003, fazemos a Pequisa Online, para entender melhor o projeto e propor inovações. Sabemos, por exemplo, que existem pelo menos dois Acessa SP — um para o jovem de 14 anos, outro para os usuários de 35, 40. O menino chega, nem vê direito quem está lá e já começa a teclar. O outro, não. Precisa que o monitor olhe, converse. Prestamos muita atenção a essas sutilezas e tentamos preparar o ambiente para as diferenças. Há uma adequação na estrutura dos postos para dar conta desse cara que precisa de atenção mais cuidadosa. Então, uma das diferenças do Acessa é que o programa tem a premissa de encontrar indicadores, tanto qualitativos quanto quantitativos, para uma gestão a longo prazo. Agora, a primeira questão do programa é o compartilhamento de conhecimento. Não é como criar um site e só enxergar que ele tem determinado número de leitores. Esse site também tem uma rede. Como esses leitores interagem? Em uma rede, vai acontecendo um aprendizado distribuído. Às vezes, o processo começa com um curso de informática e a rede começa a fazer sentido na vida das pessoas.

ARede – Como começou a Rede de Projetos, uma das ações do Acessa SP para valorizar o repertório que aparece na ponta?
Dimantas
Em 2006, começamos a pensar a rede no formato atual. Já existia uma rede de projetos, mas era complexa. O projetista tinha de preencher um cadastro cheio de detalhes. Decidimos simplificar isso. As pessoas querem um espaço para colocar uma ideia e que essa ideia seja acolhida. Não necessariamente o projeto tem de ser grandioso. Pode ser um blog, uma aula de informática, uma ação local. Percebemos também que o projeto do Acessa SP tinha um uso específico do computador. Era meia hora de acesso, e isso define um pouco o que é possível fazer. Com a rede de projetos, conseguimos oferecer mais tempo para quem tiver uma boa idéia. E dar condições para um uso mais qualificado da internet.


ARede – De que forma vocês conseguem ampliar o tempo e qualificar o uso?
Drica
A Rede de Projetos pode usar até um terço do tempo de acesso disponível nos telecentros. A regra geral dos postos é que cada pessoa tem meia hora por dia de acesso, onde há fila. Para todos poderem usar. Quando alguém tem um projeto, basta apresentar ao monitor e explicar quanto tempo precisa para desenvolvê-lo. “Quero fazer um blog sobre leituras bacanas para mulheres, preciso de duas horas, três vezes por semana”. O posto vai alocando os computadores necessários, na medida em que os projetos vão chegando.

ARede – Como são esses projetos?
Dimantas
Um exemplo bacana é Mulheres On Line (Veja a reportagem na página 24). Um pessoal da cidade de Iepê começou a fazer um curso de informática para mulheres cortadoras de cana, em 2006. Na época, a equipe da Rede de Projetos foi lá e fez um filme bonito e colocou no ar. As pessoas se enxergaram realizando o projeto. Elas conseguem se ver, ver que o que estão fazendo é mais importante do que imaginavam. Não pode haver um julgamento nosso sobre se o projeto é legal ou não. Em Iepê, aquele curso para mulheres foi uma inovação absurda. Mas há outros projetos legais. Passamos de 50 projetos online para 390 em um ano. O processo não é simples, não é só querer criar uma rede e ela vai acontecer. E o objetivo de um projeto não é um curso em si, nem o acesso à internet. É criar um comum. O projeto é a rede. O voluntário de Iepê não é autor do curso de navegação, há muitos tutoriais para isso na internet. Ele teve a ideia de organizar as mulheres para fazê-lo. O autoral dele é o compartilhamento. Na ponta se faz muita coisa, mas não necessariamente o cara consegue documentar aquilo que faz, replicar, entender que outros estão fazendo a mesma coisa, que ele pode usar pedaços do que é feito. Essa cultura do remix, do uso livre, não é clara na sociedade. Pelo contrário, isso é muito travado. Trabalhando assim, ajudamos as pessoas a entender que participar de uma rede pode trazer outras possibilidades. A rede não tem uma ação pedagógica ou didática, ela dá o subsídio para as pessoas encontrarem seus caminhos.

ARede – Qual o papel dos monitores?

Dimantas – O poder público não consegue chegar na ponta. Quem está na ponta é o monitor. Normalmente, ele não se vê como pertencente ao programa, acha que é mais um, não percebe que tem importância na gestão, em fazer o programa ficar mais legal. O Acessa SP investe muito em capacitação, desde o início. Fazemos 80 horas/ano de capacitação de monitores. Há encontros regionais, ensino a distância. Eles aprendem o que é um projeto, formas de ser feito, como criar projetos online. Para que eles também entendam que ideias colocadas na rede têm condições de crescer. Uma ideia nem sempre rende como a outra, depende de como cada um enxerga a rede, como se coloca nela. Então, na Rede de Projetos, o critério não é escala, ou seja, quanto maior, melhor. O foco é o crescimento da rede. Se a rede crescer, a gente tem escala.
Drica – Tem um lista de discussão que emergiu do programa, como ferramenta de gestão. É a lista usada pelos monitores, que hoje são cerca de 800. Quando um deles, por exemplo, fica sem saber o que fazer porque uma pessoa chegou pedindo informação sobre gravidez de risco, ele coloca uma pergunta na lista. A média é de cinco minutos e meio para surgir uma resposta. É muito rápido. Mas demorou pelo menos dois anos para que a lista funcionasse assim.


ARede – Como garantir esse funcionamento, considerando-se a rotatividade dos monitores?
Drica – O Acessa SP é um ambiente de passagem, do ponto de vista dos monitores. Proporciona uma formação para a vida, essa vida de estar mais conectado, em rede. Os monitores ficam, em média, dois anos. Muitos começam a estudar, a ler, retomam o estudo, empolgados por conhecer outras coisas. Tem muito despertar, e as pessoas mudam muito. Mas o conhecimento sobre o programa fica no posto. Cada posto tem uma história, e quem chega continua a história. Essa história está na lista, está nos programas de formação. Muitas vezes o monitor está pela primeira vez na capacitação, então a gente tem o papel de contar a história para ele. Nossos controles em cima do monitor são poucos. Não tem lista de presença, ele não bate ponto. Mas os usuários vão se apropriando do espaço, há uma riqueza tão grande que as coisas não deixam de acontecer.
Drica – Os programas de inclusão digital também precisam de um tempo para apropriação do projeto, não adianta ficar ansioso porque há ferramentas e as pessoas não usam. O Acessa SP é uma construção interessante porque estamos no terceiro mandato desde que foi criado, em 2000. O governo mudou e o programa continuou. Isso é forte em uma política pública. Aí você consegue construir uma lista, o programa tem uma rede. Teve tempo para se desenvolver, em vez de voltar atrás quando não estava funcionando e recomeçar do zero. Quando isso acontece, se perde indicadores, se perde a história da construção dos programas.

ARede – O que mostram os indicadores?
Drica – Há indicadores muito complexos e quem não participou do projeto desde o começo não consegue manejar. Os nossos são poucos indicadores, mas estão contando a história, são comparáveis. Tem uma série histórica, com cinco anos, que reflete a própria história da internet, da apropriação de várias tecnologias que foram usadas nesse período. Todas essas informações estão online, como o restante do conteúdo do Acessa. Ao olhar esses dados, percebe-se, por exemplo, o aumento do uso da banda larga em São Paulo, o desenvolvimento dos serviços de governo eletrônico. Começamos a perceber o fenômeno das lanhouses já em 2005, no perfil dos usuários. Tem uma coisa interessante sobre a apropriação dos jovens. Jovens não usam e-mails, usam Orkut, serviços de mensagens em celular ou Messenger.

ARede – Foi desses indicadores que surgiu a ideia do Acessa Escola, não é?

Dimantas – A gente percebeu, pela pesquisa, que 59% do público eram jovens e estudantes. Os dados apontavam para uma oportunidade de estimular o uso do Acessa nas escolas. Então, a Secretaria da Educação está coordenando este programa, o Acessa Escola, por meio da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) em parceria com a Secreataria de Gestão Pública.
Drica – A apropriação das novas tecnologias e da internet pela escola ainda é uma questão sem resposta. Você vê que as escolas públicas estaduais têm salas de informática e somente a minoria está em uso, pelos mais variados motivos. E tem o tal do “uso pedagógico da informática”. Foi feito todo um investimento baseado na ideia de que o professor agora “tem que usar” informática na sua aula. E os professores se viam em uma pressão de não só incorporar a informática em suas vidas mas de ensinar, também, usando recursos que eles nem tinham.
Drica – Então o governo percebeu que tinha salas de informática fechadas e um programa de sucesso no qual quase 60% dos usuários são alunos de escolas. Os princípios do Acessa SP foram levados para o Acessa Escola. E é uma escala enorme, diferente da que temos aqui: começou com 600 escolas e tem a meta de chegar a todas as 3,55 mil até 2010. E vamos fazer um programa simples. O princípio é o do Acessa SP. Abriu a sala, o acesso é de todos, não há obrigatoriedade, e tem alguém ali que vai cuidar de você. Um monitor, um estagiário remunerado, aluno do Ensino Médio da própria escola. Esse monitor vai ser capacitado para saber que o jovem tem um perfil de uso e o professor, outro.
Dimantas – Vai ter Pesquisa Online, Rede de Projetos, um portal com uma pegada menos institucional e mais informativa, mais de interação com o usuário. Daqui a oito anos a gente vai dizer como o programa se desenvolveu. Porque o uso é meio inexorável, a gente já sabe que acontece. As pessoas vão entrar, se apropriar, fazer coisas.


Perfil
Hernani Dimantas e Drica Guzzi são pesquisadores da Escola do Futuro, da Universidade de São Paulo. Ele é articulador dos projetos Metá:Fora e MetaReciclagem, autor do livro Marketing Hacker (Garamond). Ela defendeu tese de mestrado com o tema “Participação Pública, Comunicação e Inclusão Digital”.



A força de uma boa idéia

QUASE AO MESMO tempo em que decidimos entrevistar Drica Guzzi e Hernani Dimantas, recebemos um e-mail do Anderson Douglas da Silva, de Iepê (SP), falando sobre o projeto Mulheres On Line, desenvolvido a partir da proposta da Rede de Projetos do Acessa SP. Conheça essa história, contada com toda a emoção do próprio autor.


*
Anderson Douglas da Silva,
estudante de Comunicação Social,
com alunas do Mulheres On Line

Anderson — Tenho 25 anos, moro na cidade de Iepê. Sou voluntário do programa Acessa SP. No ano de 2006, criei um projeto de informática (educação popular) exclusivamente para mulheres acima de 18 anos do meu município. Tive a idéia após uma capacitação do Acessa SP em Presidente Prudente, que tinha como objetivo despertar o lado social de todos os envolvidos no programa. Confesso que no começo fiquei com medo, mas mesmo assim tomei coragem, fui ousado e criei o projeto. No começo, ofereci 90 vagas para mulheres. Para minha surpresa, em dois dias as vagas haviam se esgotado. Na primeira turma, foram atendidas 150 Mulheres. A demanda foi crescendo depois que iniciei as aulas. Então criamos uma lista de espera, para a próxima turma, que até então eu nem imaginava que existiria.

Uma grande “mistura” de mulheres participou do projeto. Durante esses anos viajei com as alunas para Ponta Grossa e Vila Velha (PR), para Teodoro Sampaio (Parque Estadual Morro do Diabo), realizamos confraternizações e formaturas. O curso é gratuito e a prefeitura contribui com o material utilizado, espaço e apoio sempre que preciso. Trabalho como voluntário desde 2006 neste projeto, e confesso que não há nada mais prazeroso que ensinar e aprender. Este projeto não teria o reconhecimento e o “sucesso” sem amigos voluntários que se em­penharam juntamente comigo. Agradeço a Deus pelas vidas de Arivaldo dos Santos, Renata Damásio, Izete Batista, Camila Alves, Fernando Manzano, Daiana Cristina, Nilson Geronimo, João Campeão Júnior e Gabriel Campeão.
O projeto Mulheres On Line ganhou destaque estadual depois que recebemos a visita da equipe do programa Acessa SP, da Rede de Projetos. Eles realizaram um vídeo com as cortadoras de cana. O vídeo conta o dia-a-dia de uma aluna, a Inês, que graças ao curso passou de cortadora de cana para secretária. Está no link www.youtube.com/watch?v=IQ3dcminZZQ

Com o curso de Mulheres On Line, os homens começaram a reivindicar um curso para eles. Então criei, no final de 2007, o Homens On Line, que está atualmente na terceira turma e formou 200 homens. Assim como no curso de mulheres, há cortadores de cana, serventes, eletricistas e pedreiros. Veja no www.youtube.com/watch?v=1_t2DjY1t0Y.