Quintanas da periferia

Celebrando a poesia, a Cooperifa mostra que o sarau, que surgiu na Idade Média, pode ser organizado pela (e para a) periferia.

Celebrando a poesia, a Cooperifa mostra que o sarau, que surgiu na Idade Média, pode ser organizado pela (e para a) periferia. 
Heitor Augusto


Zé do Batidão, bar onde acontecem os saraus da Cooperifa.

Todas as quartas-feiras, uma parte considerável de Piraporinha, na zona sul da capital paulista, pára. Não é por causa do futebol na televisão. Das 21 horas à meia-noite, a poesia une os moradores no Zé do Batidão, nome do bar onde acontecem os saraus da Cooperifa.

Os encontros são realizados há seis anos. São saraus em que poetas anônimos e artistas da periferia que já têm algum público se juntam para mostrar suas composições. O clima é de camaradagem: a cada poesia recitada, uma vibração geral como gol em final de campeonato. Durante as declamações, reina o silêncio na platéia: o menor cochicho é reprimido por um sonoro “xiiiiii”.

O grito de guerra “Povo lindo, povo inteligente! É tudo nosso!” é o sinal para começar efetivamente o sarau. Uma das poetas com presença constante, e que dá o tom de contestação ao sarau, é Lila, uma jovem mulata, cujo cabelo é moldado por dreadlocks. Sua poesia defende o legado dos africanos na construção da identidade brasileira: “Descobrir-se África no mapa do corpo/parir novos pares, novos pilares/novos Palmares”.

Apesar de ser fortemente marcado por textos políticos que pretendem dialogar, acima de tudo, com a realidade da periferia, o Sarau da Cooperifa também traz poetas que tratam de outros temas. O auge da empatia entre público e artista acontece quando seu Lourival, apresentado como “o homem mais bonito do Sarau”, é convidado a aproximar-se do microfone. Com cerca de 1,70 m, bigode à moda do cantor mexicano Bienvenido Granda, roupa social e cabelo cuidadosamente penteado, ele aposta nas rimas irônicas, mas sempre devotas ao amor: “E as moças falava/‘venha comigo brincar’/mas acordei com o despertador/na hora de trabalhar”.

O foco está no conteúdo das poesias, porém a performance é um componente importante da apresentação. Tanto que muitos que apresentam seus textos se apóiam na ambientação dada por violão ou pela batida do rap. Um deles é Jairo, do grupo de Rap Periafricania, cujo verso “Clarices e Quintanas da periferia”, em referência à Clarice Lispector e Mário Quintana, inspira o título desta reportagem. “É da periferia e para a periferia. Quem é de fora sempre é muito bem-vindo, mas tem que chegar com respeito à nossa arte”, defende Sérgio Vaz, poeta e um dos idealizadores, ao lado de Marco Pezão, da Cooperifa, ou Cooperativa Cultural da Periferia. Os saraus começaram em outubro de 2001, no bar do Garajão, no Taboão da Serra, município que faz divisa com a região sudoeste de São Paulo. Por volta de 2004, os encontros foram transferidos para o bar do Zé do Batidão. “Conhecia o seu Zé desde criança e, no passado, meu pai foi o dono desse bar”, conta Sérgio.

Antropofagia periférica


Encontro antropófago reuniu 30
entidades

Em novembro do ano passado, a Cooperifa organizou seu próprio choque antropofágico. Foi a Semana de Arte Moderna da Periferia, numa referência à Semana de 22, com 30 entidades. As atividades incluíram música, cinema, literatura, dança e artes plásticas. Além da “antropofagia periférica”, os poetas da Cooperifa marcaram presença em abril na 4ª Virada Cultural, evento em São Paulo que trouxe 24 horas de atrações gratuitas espalhadas pelo centro da cidade. Os poetas da periferia apresentaram-se para um público de 10 mil pessoas.

Pelo trabalho cultural, Sérgio, representando a Cooperifa, recebeu o Prêmio Educador Inventor, do Projeto Aprendiz e Unesco. A experiência cultural na zona sul já foi alvo de mestrado (escrito por Nilton Franco), dois TCCs (Trabalhos de Conclusão de Curso), e recentemente teve os saraus documentados em “Povo Lindo, Povo Inteligente”, produzido pela DGT Filmes.

Cooperifa nas livrarias

A produção literária periférica passou a receber luzes e méritos com o lançamento de “Capão Pecado”, em 2000. Estréia de Ferréz na literatura, o livro descreve um cotidiano de miséria, violência, droga e morte no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, a partir da história de um garoto, Rael, que se apaixona pela namorada do melhor amigo. Desde então, o escritor assinou contrato com a editora Objetiva e já publicou os livros “Manual Prático do Ódio” (2003), “Amanhecer Esmeralda” (2005) e “Ninguém É Inocente em São Paulo” (2006). Tornou-se colunista da revista “Caros Amigos” e criou a grife 1daSul, voltada para os jovens do bairro.

Do outro extremo da cidade e na mesma época em que Ferréz, surgiu Alessandro Buzo, que lançou, em 2000, de maneira independente, seu primeiro romance — “Trem, Baseado em Fatos Reais”. As atenções para seu trabalho aumentaram quatro anos depois, com a publicação de “Suburbano Convicto”. Após três lançamentos diferentes, Buzo encontrou respaldo na editora Global, que, em 2007, lançou cinco livros da coleção Literatura Periférica, na qual ele participou com o romance “Guerreira”.

A coleção da Global, coordenada por Eleilson Leite, da ONG Ação Educativa, foi canal de expansão também para os poetas da Cooperifa. A série foi inaugurada com “Colecionador de Pedras”, quinto livro do mineiro Sérgio Vaz, que já carrega no currículo as publicações independentes “Subindo a Ladeira Mora a Noite” (1992), “A Margem do Vento” (1995), “Pensamento Vadio” (1999) e “A Poesia dos Deuses Inferiores” (2005). O terceiro livro da coleção Literatura Periférica é de Ademiro Alves de Souza, o Sacolinha, também da Cooperifa. Graduado em Letras, teve seu primeiro romance, “Graduado em Marginalidade”, indicado para o Prêmio Jabuti. Participa da coleção com “85 Letras e um Disparo”, cuja 1ª edição foi publicada pela Editora Ilustra. E foi reeditado pela Global.

No prelo, estão Allan da Rosa, com “Da Cabula – Istória pa tiatru”, e Dinha, com “De Passagem, mas Não a Passeio”. Allan criou em 2005 o selo Edições Toró para divulgar a produção vinda da periferia. Já Dinha, apelido de Maria Nilda Mota de Almeida, é formada em Letras pela USP e organizou o “Ações Afirmativas em Educação”, da Selo Negro, que reúne artigos sobre a questão racial.

Quem quiser conferir exclusivamente o material coletivo produzido pela Cooperifa pode recorrer a “O Rastilho da Pólvora”, de 2003, que reúne textos de 53 autores do movimento. Uma nova versão, que vai reunir textos de 40 autores reunidos sob o título “Antologia Poética do Sarau da Cooperifa”, será lançada nos próximos meses.

http://colecionadordepedras.blogspot.com/ – Blog de Sérgio Vaz
www.suburbanoconvicto.blogger.com.br/ – Blog de Alessandro Buzo
http://1dasul.blogspot.com/ – Grife do Capão Redondo criada por Ferréz