Rádio Comunitária – Nova Lei reacende o debate das rádios

Em São Paulo, o prefeito sacionou uma lei que dá ao município o poder de autorizar emissoras comunitárias na cidade. Os radiodifusores comerciais, contudo, já avisam que vão entrar na Justiça, alegando que ela é inconstitucional.



Em São Paulo, o prefeito sacionou uma lei que dá ao município o
poder de autorizar emissoras comunitárias na cidade. Os radiodifusores
comerciais, contudo, já avisam que vão entrar na Justiça, alegando que
ela é inconstitucional.
Lia Ribeiro Dias

Comemorada pelas entidades ligadas à
democratização da comunicação e à defesa das rádios comunitárias, a
promulgação, pelo prefeito José Serra, da Lei 14.013, que disciplina a
exploração do serviço de radiodifusão comunitária no município de São
Paulo, coloca em pauta um importante debate: o direito da comunidade de
ter acesso a um meio próprio de expressão. Pela lei, aprovada pela
Câmara Municipal de São Paulo em 11 de maio e sancionada em 23 de
junho, o município passa a ser o poder concedente das outorgas para a
exploração do serviço de radiodifusão comunitária. Mesmo que tenha vida
curta — os radiodifusores, por meio ou da Associação Brasileira das
Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) ou da Associação das Emissoras
de São Paulo (Aesp), pretendiam entrar com uma ação direta de
inconstitucionalidade (Adin) no Ministério Público Estadual –, a lei
dá nova munição a um debate que está longe de se esgotar.

Resultado de uma luta que já dura mais de seis anos, desde a aprovação
da Lei das Rádios Comunitárias em 1998, a proposta que se transformou
em lei percorreu um longo caminho de mobilização e discussão, uniu dois
partidos que não são aliados — o projeto foi endossado pelos
vereadores Ricardo Montoro, do PSDB, e Carlos Neder, do PT — e colocou
a Prefeitura de São Paulo em rota de colisão com os radiodifusores.
Para eles, não cabe discussão. A lei é inconstitucional, asseguram,
porque a Constituição, em seu artigo 22, inciso IV, estabelece que é
competência da União legislar sobre telecomunicações e radiodifusão.
“Tanto o município não tem competência para legislar sobre
radiodifusão, que outras iniciativas semelhantes adotadas por
municípios de Goiás, Minas Gerais e São Paulo — no caso, Campinas —
foram suspensas por Adins”, relata Alexandre Jobim, advogado da Abert.

Poder local

O juiz mineiro Paulo Fernando Silveira, cujo parecer foi usado para
sustentar a constitucionalidade do então projeto de lei, defende tese
oposta. Ele entende que cabe à União legislar sobre radiodifusão,
quando for o caso de rádios de grande potência, cujas ondas sonoras
atinjam mais de um estado da federação. Mas a radiodifusão comunitária,
de pequeno alcance e baixa potência, “insere-se, sem sombra de dúvida,
na competência municipal, ante o predomínio do interesse local”.
Silveira enumera as razões para esse predomínio do interesse local: 1)
a pequena potência, em watts, das ondas de rádio, de modo a não
ultrapassar a fronteira do município; 2) a definição de contorno, em
virtude da quantidade de dBm (decibéis) da emissora, de modo a evitar
interferência em outros serviços locais; 3) a especificação da área de
cobertura de cada emissora, ou seja, abrangência de todo o território
municipal ou limitada a um bairro, vila ou setores; e 4) o relevo do
município, a fim de determinar a altura da antena e sua exata posição e
direcionamento, visando contornar os obstáculos físicos existentes em
cada município.

Para chegar a essa formulação, o juiz primeiro faz uma análise da
Constituição de 1988, afirmando que não só manteve o princípio
federativo — ou seja, que União, estados e municípios são entes
federativos e que não pode haver concentração, nem primazia, de poder
político em nenhum deles –, como transformou-o em cláusula pétrea, o
que significa que não pode ser alterada por emenda constitucional. A
isso soma-se o fato, em sua argumentação, de que a Constituição contém
uma hierarquia, onde os princípios — caso da federação — valem mais
do que normas ou regras constitucionais — item que estabelece que
compete à União legislar sobre radiodifusão.

Conselhos municipais


Willian Okubo, Afonso Celso dos
Prazeres, Jeronino Barbosa,
Sérgio
Gomes e Paulo Gallo.

Toda essa argumentação jurídica, bandeira dos movimentos que levaram à
aprovação da lei paulistana 14.013, enfrenta contestação também no
governo federal. Para o secretário de Comunicação Eletrônica do
Ministério das Comunicações, Sérgio Diniz, quando ainda era ministro
Eunício Oliveira, o município não tem competência para legislar sobre
radiodifusão. “Enquanto não se alterar a Constituição, essa continuará
sendo uma prerrogativa da União. A iniciativa tem caráter muito mais
política que legal”, avaliou. Também André Barbosa, assessor da Casa
Civil para a área de comunicação eletrônica de massa, com destaque para
radiodifusão comunitária, bate na tecla da inconstitucionalidade. Só
que ele abre espaço para o debate em outra vertente da questão, por
entender que a comunidade não só tem direito à informação e à produção
cultural que acontece no seu espaço como tem que ser um agente desse
processo.

Nesse sentido, Barbosa relata que uma das sugestões do grupo
interministerial que estuda a questão das rádios comunitárias, e que
deve concluir seus trabalhos até agosto, é que os municípios sejam os
responsáveis pela seleção dos candidatos a uma outorga de rádio
comunitária, por meio dos Conselhos Municipais de Comunicação Social,
que seriam integrados por representantes do Executivo municipal, da
Câmara Municipal e da sociedade civil. “A administração do espectro,
que é um bem finito, continuaria nas mãos da União, assim como a
designação das freqüências, mas a definição de quem receberia as
outorgas contaria com a participação decisiva dos conselhos
municipais”, propõe Barbosa.

Cadê canal?

A Lei das Rádios Comunitárias até hoje é letra morta na cidade de São
Paulo, embora já tenha quase sete anos. Isso porque o canal 200,
designado para as rádios comunitárias dentro da normatização do
espectro sugerida pela UIT – União Internacional de Telecomunicações,
não estava disponível no município. Ocupado na Grande São Paulo pela
rádio Gazeta, limpá-lo significaria fazer um remanejamento inviável das
emissoras, por razões não só econômicas mas de prejuízo para o próprio
ouvinte, comenta Sérgio Gomes, diretor da ONG Oboré e representante no
Brasil da Associação Mundial das Rádios Comunitárias.

Diante disso, os movimentos envolvidos com a radiodifusão comunitária
— há 262 pedidos de outorga protocolados no Ministério das
Comunicações desde a aprovação da Lei — aguardaram uma outra solução
do poder público. Como ela não veio, lançaram, em 2003, a campanha Cadê
Canal. Só no final de 2003 (em resolução publicada em março de 2004),
mais de dois anos depois do início da tramitação da lei que daria ao
município a competência para outorgar concessões de radiodifusão
comunitária, São Paulo conseguiu saber da Agência Nacional de
Telecomunicações – Anatel que teria um canal disponível para a rádio
comunitária, o 198. “Tivemos que contratar estudos técnicos para tentar
resolver a questão de São Paulo”, relata Ara Minassian, então
superintendente de Comunicação Eletrônica de Massa da Anatel. Ele
explica que, pela normatização da UIT, a faixa de freqüência modulada
começa no canal 198 que, embora não apareça no dial, é sintonizado
perfeitamente — das marcas de rádio testadas pelo CPqD, fundação
contratada pela Anatel para fazer os estudos, apenas uma não sintonizou
o canal.

Assim, depois dos testes e da adoção de uma nova sistemática de
proteção das freqüências, por meio da combinação de células,
conseguiu-se, diz Minassian, colocar zonas justapostas sem banda de
guarda (espaço de proteção para uma freqüência não montar na outra).
“Hoje, o Ministério das Comunicações já pode fazer o chamamento para
conceder outorga de quatro, cinco, ou até seis emissoras em cada área”,
diz ele. Por que o Minicom não fez o chamamento em 2004 se a questão
técnica está resolvida? Diniz explica que optou-se por aguardar as
conclusão da Comissão Interministerial de Rádios Comunitárias para
adotar uma solução global. Na avaliação de Sérgio Gomes, representante
da Associação Mundial de Rádios Comunitárias e que pleiteia uma rádio
comunitária para a Vila Buarque, em São Paulo, junto com a Igreja da
Consolação, a Biblioteca Mário de Andrade e o condomínio do Edifício
Copan, a questão é política. “Como há muitos pedidos e pressão
contrária dos radiodifusores, o chamamento não saiu”, aposta ele.

Os principais pontos da lei


A Lei 14.013, sancionada em 23 de junho de 2005 pelo prefeito de São
Paulo José Serra, define o Serviço de Radiodifusão Comunitária,
estabelece os seus objetivos, o tipo de programação, proíbe a
transferência de outorga, permite às rádios comunitárias captar
patrocínios e define as infrações e respectivas punições.
A seguir, os principais pontos da Lei, que tem prazo de 90 dias para ser regulamentada:
. O Serviço de Radiodifusão Comunitária é a radiodifusão sonora, em
freqüência modulada, operada em baixa potência e com cobertura
restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias em fins
lucrativos;
. Seu objetivo é divulgar notícias e idéias, promover o debate de
opiniões, ampliar as informações culturais; inegrar a comunidade por
meio do desenvolvimento do espírito de solidariedade comunitária, do
incentivo à participação em utilidade pública e de assistência social;
e contribuir para o aperfeiçoamento profissional dos jornalistas e
radialistas;
. Sua programação deve priorizar os programas com finalidades
educativas, artísticas, culturais e informativas que possam beneficiar
o desenvolvimento geral da comunidade; preservar os valores éticos e
sociais da pessoa humana e da família, para fortalecer a comunidade; e
coibir qualquer tipo de discriminação;
. A outorga para a exploração do Serviço de Radiodifusão Comunitária
será concedida pelo Executivo municipal, medidante concessão, por dez
anos; e as outorgas não poderão ser transferidas a terceiros;
. As rádios comunitárias poderão admitir patrocínio, sob forma de apoio
cultural ou inserção publicitária para programas transmitidos,
priorizando os estabelecimentos situados na área da comunidade
atendida. Os recursos deverão ser, obrigatoriamente, revertidos para a
própria emissora.