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Gigantescos grupos industriais preparam o Ultraviolet, um “ecossistema” contra o compartilhamento de conteúdo   SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA

ARede nº61, agosto 2010 – Depois da onda da web 2.0, que enaltecia as práticas colaborativas e o compartilhamento de conteúdos digitais, a indústria dos controladores da criatividade começou a reagir. Grandes grupos de mídia e de entretenimento estão tentando fechar todo o seu conteúdo na rede para evitar remixagens, amostragens e trocas de arquivos. Apostando em soluções de grande qualidade, que aprisionem seus consumidores, empresas como a Apple lançam plataformas e equipamentos totalmente fechados, para que somente se comuniquem com soluções por desenvolvidas por proprietários.

Nesta mesma direção, 58 grandes corporações se reuniram em um consórcio para criar o mais avançado sistema de gerenciamento de direitos autorais ou Digital Rights Management (DRM), um mecanismo tecnológico que impede a cópia e, portanto, poderia reduzir o enorme sucesso das redes P2P (par-a-par). Empresas de
software como a Microsoft e a Adobe, empresas de hardware como HP, Cisco, Toshiba, Panasonic, Philips, Sony, Intel e Nokia, empresas de telecomunicações como a Comcast e empresas de entretenimento e comunicação como a Warner e a Paramount, entre outros gigantes, integram esse consórcio autodenominado Digital Entertainment Content Ecosystem (ou ecossistema de conteúdo digital de entretenimento, DECE na sigla em inglês). Este novo padrão de distribuição de conteúdos digitais recebeu o nome de Ultraviolet.

O consórcio afirma que o Ultraviolet garantirá a todos os consumidores que comprem e acessem o conteúdo de qualquer empresa do consórcio por meio de smartphones, televisores, computadores e consoles de videogames sem nenhum problema de compatibilidade, como ocorre hoje. Independentemente do produto e de sua origem, ou seja, de quem o consumidor o comprou, a interoperabilidade seria total dentro do consórcio. A aposta é fidelizar os consumidores que, ao adquirir os aparelhos e soluções do Ultraviolet, não conseguirão burlar os sistemas anticópia. Estão fora desse consórcio a Apple, que já construiu sua plataforma completamente fechada, e a Disney, que irá lançar no final do ano a Keychest.

Pelo que foi divulgado até o momento, o funcionamento do Ultraviolet será o seguinte: o consumidor ganhará uma conta gratuita na plataforma do consórcio. De lá, ele poderá gerenciar todo o seu conteúdo, que ficará armazenado em uma nuvem digital, como se fosse um armário virtual. O internauta poderá guardar suas compras realizadas nas lojas online do consórcio. Os aparelhos das companhias poderão acessar com grande qualidade esses conteúdos. Os internautas não conseguirão passar esses mesmos conteúdos para outros aparelhos que não sejam os dos integrantes do consórcio. Também não conseguirão compartilhá-los com quem não pagou, pois a trava tecnológica estará presente em cada máquina.

O cenário que se avizinha é de grande preocupação, pois esses grupos econômicos querem anular o grande efeito compartilhador da internet. Todos os integrantes do consórcio utilizam eufemismos para fechar seus conteúdos. Afirmam que estão providenciando um novo cenário de livres escolhas para os consumidores em todo o mundo. Um dos vice-presidentes da Comcast, Mark Coblitz, afirmou que “não há nenhuma outra oferta que proporcione a escolha nessa plataforma aberta com tanta riqueza de entretenimento digital”. Blair Westlake, vice-presidente corporativo de Midia & Entretenimento da Microsoft Corporation, declarou que o “Ultravioleta foi projetado para fornecer aos consumidores mais opções e facilidade de uso para o entretenimento digital, trazendo inovação e eficiência para a indústria do entretenimento”. Ou seja, querem anular a grande participação que as pessoas conquistaram com a rede mundial de computadores a partir da cópia, da alteração e da recriação de conteúdos. Esses grupos industriais pensam a internet apenas como uma forma rápida e eficiente de distribuição de conteúdos, não como uma rede interativa e de práticas recombinantes.

A criatividade e a diversidade cultural estão cada vez mais ameaçadas por esses cercamentos digitais. A internet permitiu a grande circulação de conteúdos digitais que libertaram a música, o vídeo e o texto de seus suportes. Esta qualidade do digital permitiu o surgimento de repositórios de recombinação de peças culturais. Em paralelo, a emergência das redes de relacionamento ou redes sociais acelerou os processos de trocas, amostragens e distribuição de bens culturais. A indústria cultural, que busca concentrar as atenções dos internautas em seus produtos, tem pouco interesse na diversidade. Ultraviolet é mais uma tentativa de uso da criptografia e codificação de dados para bloquear a cópia de conteúdos que possam ser retrabalhados pela crescente audiência criativa da rede. Uma boa parte das pessoas não se contenta em apenas assistir ou ler algo. Querem brincar ativamente com esses conteúdos. Isso deveria ser incentivado ao invés de sitiado.