Ministério da Cultura muda orientação e se alinha ao órgão responsável por arrecadação e distribuição de direitos autorais
Sergio Amadeu da Silveira
ARede nº66 – janeiro/fevereiro de 2011
O Ministério da Cultura (MinC), com Gilberto Gil, deu uma virada extremamente positiva em direção à era da informação. Além de abrir uma área de política digital voltada para a cultura, Gil assumiu a importância de incentivar na internet o compartilhamento de bens culturais como base para a criatividade e para a ampliação da diversidade cultural.
Assim, o software livre entrou na pauta do MinC, os games passaram a ser vistos como fundamentais para o audiovisual e as licenças Creative Commons foram assumidas como parte da estratégia de incentivo da cibercultura em solo brasileiro, entre outras inovações. Não é por menos que um dos pontos altos da projeção internacional do Brasil na gestão Lula foi exatamente a sua política cultural.
Outro ponto fundamental desse período foi o entendimento dos gestores do MinC de que a cibercultura reuniu elementos que foram separados no mundo industrial. As redes informacionais estavam e estão permitindo que a ciência se reaproxime da cultura, que a tecnologia se reencontre com as artes. Consolidou-se a percepção de que a cultura digital era essencialmente formada de práticas recombinantes. A própria internet, um dos ícones da cultura contemporânea, é um arranjo tecnocultural construído no processo aberto de reconfigurações e remixagens constantes entre criadores e usuários.
Além disso, o MinC assumiu a proposição contrária à posição de diversos setores conservadores que disseminam equívocos do senso comum. A diversidade cultural não é reduzida no mundo digital. Constatou-se que o mais avançado, atualmente, é a combinação dos conhecimentos e ações das comunidades tradicionais, muitas das quais resgatados pela política dos Pontos de Cultura, com a cultura hacker, no sentido original do termo. Índios online, Rede Mocambos de quilombolas, articulações de comunidades ribeirinhas assumiram a importância da internet para fortalecer seus laços sócioculturais, ou melhor, seus vínculos sóciotécnicos.
Assim, os gestores do MinC viram a rede como aliada, enquanto a velha indústria do copyright e os intermediários do sucesso atacavam a internet como inimiga da cultura. Enquanto forças retrógradas da intermediação cultural clamavam pelo enrijecimento das legislações de copyright para retirar da rede suas qualidades colaborativas, vários setores do governo Lula passaram a apoiar um tipo de licenciamento flexível e voluntário que garantia o livre fluxo dos bens culturais. Inspirados no sucesso do software livre, o MinC passou a usar as licenças Creative Commons.
Em paralelo, o MinC iniciou um processo de revisão dos absurdos presentes na lei de direito autoral. Essa ação acionou imediatamente os nichos conservadores e os velhos articuladores do “jabá”, que partiram para o combate ao processo democrático de revisão da lei. O interessante é que a revisão não conseguirá avançar sobre os verdadeiros absurdos, devido ao acordo do Trips, que trata de propriedade intelectual no âmbito da Organização Mundial de Comércio. Um dos maiores absurdos é o cerceamento de obras por até 70 anos após a morte do autor. Por quê? Qual o objetivo da lei? Os conservadores dizem que sem essa proteção o autor não terá incentivo para criar. Repare no argumento falacioso. O autor que já morreu há 70 anos não terá incentivo para produzir? Por que essa proteção do criador que já morreu? É simples. Há muito tempo, a lei de direito do autor deixou de proteger o criador para proteger os intermediários e a indústria cultural.
Recentemente, a atual ministra da Cultura do Brasil, Ana de Holanda, resolveu atacar essa política iniciada na gestão de Gilberto Gil. Lamentavelmente, aliando-se ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), o órgão brasileiro responsável pela a arrecadação e distribuição dos direitos autorais, e as associações mais retrógradas de bloqueio ao conhecimento, a ministra mandou retirar as licenças Creative Commons do site do MinC. Seu ato simbólico é também uma declaração de guerra às políticas de compartilhamento implementadas pelo governo Lula. Para defender sua opção, a ministra usa a velha técnica da falsificação dos fatos. Ela diz que o Creative Commons é anti-nacional. A comunidade de software livre conhece bem essa falácia. Para conter o avanço do código-aberto, a Microsoft alegava que os milhares de desenvolvedores do GNU/Linux estavam a serviço da IBM. Sim, a IBM tinha algumas dezenas de desenvolvedores no kernel do Linux, mas os mais de 150 mil usuários avançados e colaboradores do seu desenvolvimento nem sentiriam a falta daquela empresa caso ela desistisse do software livre. Do mesmo modo, estranho estes nacionalistas de conveniência que atacam o Creative Commons enquanto nunca levantaram uma única restrição às pressões da Aliança Internacional de Propriedade Intelectual contra as políticas de compartilhamento de códigos e bem culturais implementados no país pelo governo Lula.
Jabá
Redução do termo jabaculê, que significa propina, presente ou privilégio.