A internet tem papel cada vez mais relevante no processo de democratização das sociedades
SERGIO AMADEU DA SILVEIRA
ARede nº67 – Março de 2011
No início de fevereiro, uma resenha publicada no The New York Times foi saudada no Brasil por pensadores que desconfiam ou não gostam de discursos que enaltecem as possibilidades democratizadoras da internet. Com o título Twitter Can’t Save You, (O Twitter não pode salvar você) o texto analisa o livro The Net Delusion, de Evgeny Morozov. (www.nytimes.com/2011/02/06/books/review/Siegel-t.html).
Como bem informa a Wikipedia, “Evgeny Morozov é pesquisador natural da Bielorrússia e também blogueiro que trabalha com os efeitos políticos da Internet. Morozov expressa um grande ceticismo sobre a capacidade da internet em provocar mudanças nos regimes autoritários, acreditando que ela também é um canal poderoso para ideias autoritárias e ultranacionalistas”.
De cara, a realidade prega uma peça no realismo do resenhista e do próprio Morozov. Como? Por exemplo, o Twitter salvou da prisão e possivelmente da tortura o estudante James Karl Buck. Em 2008 ele estava no Egito cobrindo uma manifestação pró-islâmica. A polícia de Mubarak chegou repentinamente, agredindo a todos. O estudante só teve tempo de abrir seu celular e enviar para o Twitter a palavra arrested, que significa “preso”, em português. Seus amigos da Universidade de Berkeley sabiam que ele estava no Egito fazendo o trabalho de conclusão de curso. Acionaram o governo norte-americano, que contatou sua embaixada em Cairo. Logo o estudante foi solto, mas seu guia egípcio permaneceu preso, acusado de participar de manifestação anti-regime.
O que eu gostaria de discutir aqui não é o título de um artigo, mas o papel da internet no processo de democratização das sociedades e de que forma altera o poder dos indivíduos. Morozov não acredita que a internet ou outra tecnologia qualquer possa trazer mudança social ou política. Para ele, a internet auxilia também as ditaduras, uma vez que a rede tem um potencial libertador, mas também as sementes da despolitização. Sem dúvida, o Twitter – recurso dos ciberativistas para barrar o projeto de criminalização de práticas corriqueiras na Internet, por exemplo – é bem mais utilizado pelos seguidores de Luciano Huck em suas campanhas promocionais, que servem exclusivamente a reforçar o consumismo e a alienação.
O erro de Morozov é ver a tecnologia como algo “neutro”, e não como instrumento ambivalente que pode ser apropriado para a ampliação do poder de grupos sociais. Como afirmou Langdon Winner, as tecnologias podem ser artefatos políticos. Nossa história está repleta de exemplos de grupos humanos que conseguiram vencer outros agrupamentos pelo domínio de tecnologias desconhecidas ou simplesmente não suficientemente conhecidas pelos oponentes. Mas, e a internet? É uma tecnologia de dominação?
Para responder a esta indagação, primeiro vamos recorrer à técnica utilizada pelo professor Yochai Benkler, que busca testar na realidade as afirmações sobre a rede. Benkler se pergunta se em relação aos meios de comunicação de massa (jornais, rádio e televisão) a internet aumentou ou diminuiu o poder de o indivíduo fazer mais por si mesmo. A resposta parece óbvia. A rede ampliou e muito a capacidade dos indivíduos de se comunicar, encontrar informações de seu interesse, prestar serviços, fazer denúncias, petições e mobilizar quem pensa como eles. O momento pós-internet não é comparável ao pré-internet. Morozov parece perder o pé da realidade.
A segunda afirmação de Benkler que devemos submeter ao teste empírico é a de que, em relação aos meios de comunicação massivos, a internet assegurou aos indivíduos uma possibilidade muito maior de trabalhar em conjunto, colaborativamente. Aqui também a afirmação é plenamente constatável. Por exemplo, seria impossível desenvolver tantos softwares livres se não existisse a possibilidade de colaboração em rede. Sem a existência da rede mundial de computadores, seria muito difícil que ocorressem manifestações anti-globalização como as que se iniciaram em Seatle, em 1999. Rádio, televisão e jornais não seriam instrumentos adequados a mobilizações internacionais e articulações espontâneas como a que ocorreu na derrubada do presidente Joseph Estrada, nas Filipinas, em 2001.
Por fim, Benkler faz sua terceira afirmação: a internet possibilita muito mais formas de ação fora das estruturas de mercado do que no universo das comunicações existente antes da rede. Basta ver a emergência da Wikipedia e dos mais de 250 mil softwares livres desenvolvidos colaborativamente por pessoas que têm diversos interesses e não se restringem às atividades voltadas ao lucro. A internet, inclusive, fez ressurgirem as análises baseadas na economia da dádiva, ou seja, em práticas sociais que não estão subordinadas à lógica da compra e da venda; em trocas assimétricas nos mercados. É evidente que Morozov dá ênfase no peso das grandes corporações e empresas que se formam na internet, mas ele desconsidera os fenômenos da colaboração.
A própria internet até o momento é uma rede aberta, não proprietária, desprovida de centro obrigatório para os fluxos de informação. Isto não é contraditório com a descrição de que a internet é uma rede de controle, não só de comunicação. Para ocorrer a interatividade na rede é necessária a existência dos protocolos de controle e de um sistema de endereçamento da informação – os IPs e o DNS. Este controle técnico, indispensável à comunicação distribuída, é transformado por governos autoritários, como o da China, em controle político e cultural com a finalidade de vigiar os cidadãos. Como a China faz isto? Proibindo o uso anônimo da rede, exigindo que as pessoas façam um cadastro para acessar a rede. Morozov desconsidera que a comunicação anônima é o padrão da internet e que o anonimato é o antídoto do controle dos cidadãos.
No fundo, é importante observar que a análise de Morozov é utilizada por segmentos que querem efetivamente anular os efeitos libertários e democratizantes da internet. A lógica é simples: se a internet não altera as relações de poder, não é importante defender os princípios que fizeram da internet uma rede aberta e amplamente distribuída. Não vi nenhuma crítica de Morozov à lei Sarkozy, que visa impedir o compartilhamento de arquivos digitais, nem a lei dos three strikes que visa desconectar participantes de redes P2P (peer-to-peer). Morozov não é um militante do elitismo-conservador como Andrew Keen, autor de O Culto do Amador, mas despreza a diversidade cultural das massas ao afirmar que as buscas mais populares na Rússia não são de expressões como “o que é democracia?” ou “como proteger os direitos humanos?”, mas para “o que é amor?” e “como perder peso”.
Amantes, fanáticos por games on-line, fãs do Teatro Mágico, jovens preocupadas com o corpo fazem parte da sociedade e isto não me parece um problema. A questão é que a rede permite que um jovem frequentador de academia e do Orkut possa, a qualquer momento, ser mobilizado na rede por uma causa que considere justa. Morozov traz no fundo o velho pensamento autoritário de que as pessoas devem apenas usar os meios de comunicação para falar de coisas de alto nível. Ainda bem que isto não ocorre. Agora posso escutar o podcast do Jovem Nerd e, ao mesmo tempo, assinar a petição em defesa dos jovens que criaram o blog A Falha de São Paulo. Isto é bem melhor do que ter como opção os canais de televisão e as opiniões políticas dos editores dos velhos jornais.
Sergio Amadeu da Silveira é sociólogo e um pioneiro na defesa e divulgação do software livre e da inclusão digital no Brasil. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.