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Internet ocupa espaços entre canais de TV

O uso do espectro de ondas radioelétricas será otimizado, em benefício da sociedade da informação.

Sérgio Amadeu da Silveira

ARede nº43 Dezembro de 2008 – A Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC) reuniu-se, dia 4 de novembro, para aprovar a utilização de freqüências de rádio não licenciadas entre os canais de televisão, os chamados “espaços em branco”. A decisão foi unânime e permitirá o uso mais eficiente do espectro de ondas radioelétricas, um espaço cada vez mais importante para a sociedade da informação. A FCC aposta na superação do cenário analógico com o uso de tecnologias digitais de transmissão. Larry Page, co-fundador do Google, escreveu em seu blog que essa decisão sobre o uso do espectro “vai ajudar a tornar as conexões de internet mais rápidas e melhores”. As empresas de radiodifusão, os donos das redes de TV, não concordam com a decisão. Dizem que haverá interferência em seu sinal. Mas será verdadeira tal preocupação? No cenário digital, os transmissores e receptores podem ser inteligentes e superar os ruídos e vazamentos que eram típicos dos equipamentos analógicos.


As tecnologias digitais possibilitam o uso mais inteligente e eficiente do espectro, neutralizando os possíveis ruídos e interferências. Transmissores e receptores digitais, software-defined radio, smart radio podem superar as restrições e interferências do mundo analógico. Existem várias tecnologias de uso simultâneo de uma mesma radiofreqüência por diversos usuários. Por exemplo, até a tecnologia CDMA (Code Division Multiple Access) já permitia que diversos celulares transmitissem ao mesmo tempo na mesma freqüência sem interferência entre eles, pois seus sinais são separados por códigos.

O Laboratório da FCC concluiu, em outubro, os testes sobre a capacidade de diversos dispositivos destinados a operar nas freqüências de transmissão das bandas de televisão não utilizados em cada área local. Os aparelhos, chamados de Dispositivos de Espaço em Branco (WSD, na sigla em inglês) foram desenvolvidos para demonstrar as possibilidades de transmissores de rádio digital de baixa potência. Cinco aparelhos foram submetidos a testes — Motorola, Philips, Adaptrum, Microsoft e o do Instituto de Pesquisa Infocomm.

O documento de avaliação do laboratório do FCC que subsidiou a Comissão considera que o uso dos espaços em branco permitirá o desenvolvimento de novas e inovadoras formas de uso da banda larga wireless, seja pelas empresas, seja pelos cidadãos. O documento também havia sugerido que a Comissão deveria aprovar, em um primeiro momento, duas categorias de dispositivos para uso não licenciados nos espaços em branco das TVs. O primeiro, para uso pessoal e móvel, que funcionará de modo semelhante às redes Wi-Fi. O segundo seria para uso de maior potência visando o âmbito comercial, inclusive o fornecimento de banda-larga para internet.

A idéia é autorizar o uso de rádio de dispositivos de baixa potência que detectem canais vagos, ou seja, um conjunto de freqüências desocupadas, para realizar as transmissões. Essa discussão ocorre há muito tempo nos EUA, que vive, hoje, a fase final da transição da TV analógica para a digital. Yochai Benkler, Kevin Werbach e Lawrence Lessig são alguns intelectuais que defendem o Open Spectrum ou Espectro Aberto, ou seja, a criação de espaços ou faixas de uso livre, tais como ocorre nas avenidas ou ruas das cidades onde todas as pessoas possam transitar livremente com seus veículos, desde que respeitem uma série de regras, limite de velocidade e demais sinais de trânsito. A decisão do FCC é um passo em direção ao Espectro Aberto.

Os canais utilizados para transmissão de TV ocupam faixas de freqüência de excelente qualidade, podem tornar-se uma grande via aberta para as comunidades e os diferentes agrupamentos garantirem a diversidade cultural e o efetivo direito à comunicação, a partir do acesso direto ao espectro radioelétrico. O modelo baseado no uso comum e livre é tecnicamente viável e pode ampliar a diversidade cultural. Pode ainda reduzir os custos da comunicação, incentivar a produção local e a descoberta de novos usos e o desenvolvimento de interfaces de comunicação wireless. Permitirá que dentro de uma localidade sejam formadas, com muito mais eficiência, redes mesh e grandes nuvens de conexão aberta — o que viabilizará a telefonia móvel gratuita entre os habitantes daquelas localidades. A fusão da voz sobre IP (VoIP) com o sinal aberto nas melhores faixas de propagação do espectro podem incentivar a comunicação e a produção cultural e econômica local.

E no Brasil?

No dia 29 de junho de 2006, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto Nº 5.8201, que definiu as regras de implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T). O período de transição do sistema de transmissão analógica para o SBTVD-T será de dez anos, contados a partir da publicação do decreto. Durante o período de transição, ocorrerá a veiculação simultânea da programação em tecnologia analógica e digital. Os canais utilizados para transmissão analógica serão devolvidos à União após o prazo de transição.

O aparelho de transmissão digital controlado por software pode pode escanear ou varrer o espectro em busca da melhor freqüência para o envio das ondas em determinado momento. Do mesmo modo, os aparelhos receptores digitais podem escanear constantemente o espectro para sintonizar uma estação específica e acompanhá-la, mesmo quando muda de freqüência. Assim, não é necessário tornar o espectro uma propriedade privada de alguns. É possível transformá-lo em um espaço comum. Uma via em que muitos podem passar, ou seja, transmitir seus sinais, respeitando os padrões de interesse público.

Nos próximo anos, o país debaterá o que deverá ser feito com as faixas de freqüência que serão desocupadas quando se encerrarem as transmissões analógicas da TV. Existe a possibilidade de que possam ter um uso comum, mas a disputa será grande. Tecnicamente, a decisão da FCC norte-americana desmistifica o argumento de que o Espectro Aberto seria inviável. Politicamente, o que estará em jogo é a mudança ou a manutenção do modelo restritivo e ineficiente de uso do espectro que temos atualmente.


Sérgio Amadeu é sociólogo, considerado um dos maiores defensores e divulgadores do software livre e da inclusão digital no Brasil. Foi precursor dos telecentros na América Latina e presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.