As redes digitais exigem a reforma da Lei de Direito Autoral, que “incentiva” até autores mortos. Sérgio Amadeu da Silveira
ARede nº59, junho 2010 –Quem não se lembra de Brás Cubas? O genial Machado de Assis criou um personagem que se tornou escritor depois de morto. Graças a este artifício da ficção, Brás Cubas foi o primeiro defunto brasileiro a escrever suas memórias. Observe agora uma interessante situação de não-ficção que vivemos atualmente. As leis de copyright surgiram para incentivar o criador, dizem os historiadores. Todavia, a lei estadunidense impede que a obra vá para o domínio público durante 95 anos após a morte do autor. No Brasil, a lei de direitos autorais “protege” a obra por 70 anos depois de o autor falecer. Repare que situação estranha. O autor morto há 70 anos só poderá ser incentivado por estas leis se for um sujeito como Brás Cubas, um defunto-autor.
Há muito tempo a legislação de copyright não tem nada a ver com a “proteção da obra”. Visa a proteger os intermediários da cultura e os detentores de contratos. O termo “proteção” é completamente ideológico. Uma obra, em geral, é cerceada pelo copyright. A lei de copyright foi sendo distorcida para deixar de defender os autores e criadores. Atualmente é utilizada para bloquear a criatividade e para a recombinação de ideias, uma das mais importantes fontes da invenção.
Toda cultura é baseada em práticas recombinantes. Quanto mais livre é uma cultura, mais criativa pode ser. Os diversos processos de controle da criação nos países do Leste Europeu, durante o chamado socialismo soviético, limitaram profundamente a criatividade de seus povos. Disto ninguém duvida. Todavia, a absurda privatização da cultura e o enrijecimento das leis de copyright estão gerando o mesmo processo que ocorria em sociedades submetidas ao autoritarismo. Nunca foi tão fácil acessar um bem artístico e cultural como nos tempos da internet. Mas as leis de propriedade intelectual seguem em outra direção. Foram formuladas para impedir a democratização do acesso, para bloquear a remixagem e a amostragem e para conter o fluxo criativo.
Ocorre que as redes digitais são redes de incentivo à criatividade. Qualquer jovem pode cortar pedaços de um vídeo e remontá-lo, juntando partes de outros vídeos. Todos podem legendar com facilidade um filme e brincar com os seus diálogos. Aficionados por games podem usar seu cenário para criar histórias e gravá-las em verdadeiros filmes 3D. Os fanfics, os fansubbers e os machinimas estão crescendo nas redes. Milhares de jovens e adultos estão fazendo o que Walt Disney fez com as obras dos irmãos Grimm, recontando, misturando, retirando ou inserindo passagens. Foi assim que conhecemos Branca de Neve, Rapunzel, João e Maria, Cinderela, acreditando que eram histórias da Disney. Naquela época, a lei de copyright não tinha sido piorada a ponto de impedir que os irmãos Grimm fossem recombinados. Mas mesmo eles não fizeram outra coisa senão recolher antigas narrativas, lendas e sagas da cultura popular germânica.
As atuais legislações de copyright e direito do autor são submetidas a um acordo da Organização Mundial de Comércio chamado Trips (sigla em inglês para acordo sobre os aspectos comerciais dos direitos de propriedade intelectual). Por ele, estamos impedidos, por exemplo, de reduzir o cerceamento das obras a um prazo menor que 50 anos após a morte de seus autores. Por outro lado, mesmo o Trips permite o uso justo de obras com copyright, ou seja, a cópia para finalidades que não visem ao lucro nem à comercialização. Na legislação brasileira, este uso não está claro e tem levado associações de intermediários da cultura a fazer interpretações obscuras, como a que impede um estudante de fotocopiar um livro ou alguns capítulos de um livro.
Mesmo com as limitações impostas pelo Trips, o Ministério da Cultura pretende rever a atual legislação brasileira de direitos autorais. É uma grande chance para a sociedade civil melhorar e adequar uma lei obsoleta nos tempos da comunicação em redes digitais. Não será fácil nem tranquila qualquer mudança na lei, pois existem lobbies poderosos que querem cercear ainda mais o direito de compartilhamento de bens culturais.
Por isso, formou-se uma rede pela reforma da lei do direito autoral, congregando diversas entidades da sociedade civil (www.reformadireitoautoral.org/). Esta rede quer que a reforma garanta o equilíbrio entre os direitos patrimoniais dos titulares de direito autoral e os direitos à cultura, à educação e à liberdade de expressão. Para isso, é preciso que nossa lei assegure o direito de as pessoas realizarem uma cópia integral de uma obra, desde que seja para fins pessoais ou educacionais, sem ânimo de lucro. Também é necessário ampliar o espaço do domínio público, permitindo os usos transformativos da obra.
É igualmente importante que o chamado mecanismo de Digital Rights Management (DRM ou gerenciamento de direitos digitais) seja considerado ilegal em nosso país, uma vez que essas tecnologias visam a restringir o direito de copiar um arquivo. As travas tecnológicas estão sendo pensadas como elementos da indústria dos intermediários do copyright para bloquear as redes P2P (do inglês peer-to-peer, par-a-par), a possibilidade de gravar programas da TV Digital, copiar arquivos do computador para aparelhos celulares e vice-versa, entre outros absurdos. Na verdade, precisamos assegurar na nova lei que as práticas cotidianas de milhões de pessoas na internet sejam respeitadas e que o compartilhamento de bens culturais tenha mecanismos claros de defesa. Precisamos de uma lei que garanta a liberdade de criação contra os interesses exagerados da intermediação.