Raitéqui – Rádio inteligente: a reforma agrária no ar.

É possível encontrar outra maneira de ocupar o espectro radioelétrico e superar a limitação do número de canais por freqüência? 


É possível encontrar outra maneira de ocupar o espectro radioelétrico e superar a limitação do número de canais por freqüência?  Sérgio Amadeu da Silveira

Hans Magnus Enzensberg, literato, poliglota, filósofo e teórico alemão
de origem marxista, escreveu em 1970 um artigo intitulado “Elementos
Para Uma Teoria dos Meios de Comunicação”. Ao analisar a contradição
fundamental da chamada indústria da consciência, referindo-se
principalmente à mídia de massas, Enzensberg escreveu que “a técnica
eletrônica não conhece contradição essencial entre o emissor e o
receptor.” Como observador atento, insistia em que “qualquer rádio
transistorizado também é, pela natureza de sua construção, uma emissora
em potencial, uma vez que, através da realimentação, pode atuar sobre
os outros receptores”. Detentor de uma sólida formação sociológica,
Enzensberg afirmou que “a diferenciação técnica entre emissor e
receptor reflete a divisão social do trabalho entre produtores e
consumidores, divisão esta que adquire uma significação especial no
campo da indústria da consciência”.

O fantástico dessa história é que Enzensberg escreveu isto fortemente
influenciado por um poeta alemão chamado Bertold Brecht. Nascido na
Baviera no dia 10 de fevereiro de 1898, século XIX, Brecht escreveu, em
1932, “Radiotheorie” ou, em português, Teoria do Rádio. Seus escritos
foram de um visionário. Repare na profundidade do argumento deste
trecho por ele escrito: “A radiodifusão há de ser transformada de
aparelho de distribuição em aparelho de comunicação. A radiodifusão
poderia ser o mais fantástico meio de comunicação imaginável na vida
pública, um imenso sistema de canalização. Quer dizer: isto se não
somente fosse capaz de emitir, como também de receber; em outras
palavras, se conseguisse que o ouvinte não se limitasse a escutar, mas
também falasse, não ficasse isolado, mas relacionado… Irrealizáveis
na presente ordem social, porém realizáveis em outras, essas propostas,
que são simplesmente a conseqüência natural do desenvolvimento técnico,
constituem um instrumento para a propagação e formação dessa outra
ordem social.”

Premonição

A descrição de Brecht mais parece uma defesa do que hoje conhecemos
como internet. O avanço tecnológico conduzido fortemente pelo
pensamento hacker culminou não somente na construção de uma
rede mundial de computadores, interativa, aberta e não-proprietária,
bem como está próximo de reconfigurar o uso do espectro da
radiodifusão. Como assim?

O professor assistente de Estudos Legais e Ética Empresarial na Wharton School e ex- conselheiro do Federal Communications Commission
(uma espécie de Anatel dos Estados Unidos), Kevin Werbach, considera
que, até hoje, o espectro de radiofreqüência tem sido tratado como um
recurso escasso. Assim, os governos controlam o espectro e organizam a
entrega de cada canal para um único concessionário através de licenças
exclusivas de uso por tempo determinado. Administrar a escassez de
faixas de freqüência, com licenças e concessões, pode ter sido a única
possibilidade nos anos 20 do século XX, mas, certamente, isso não é
mais verdade no século XXI. As tecnologias digitais permitem, hoje,
distinguir sinais emitidos por estações diferentes, o que possibilita
aos usuários compartilhar as ondas de rádio sem necessidade de
licenciamento exclusivo.

Não é estranho que um minúsculo feixe de fibra óptica seja capaz de
transmitir a programação de mais canais do que podemos ter na chamada
TV aberta? Mesmo os cabos de cobre podem transmitir centenas de
programas de rádio via web, ao mesmo tempo. Já o dial dos
rádios em nossos carros tem um número bastante limitado de estações.
Isso porque, até há pouco, quando dois ou mais sinais compartilhavam o
mesmo espaço em um único momento, era difícil para os receptores
distinguirem quem seriam os emissores. Isso acontece conosco. É difícil
para nós, humanos, distinguirmos duas ou mais pessoas falando ao mesmo
tempo. Os sinais, imagens acabam se embaralhando. Chamamos isso de
interferência.

Nesse sentido, o licenciamento e apropriação exclusiva do espectro
radioelétrico é considerado necessário como alternativa ao caos, ao
ruído e à cacofonia. Como muitos gostam de exemplificar, carros demais
em uma estrada acarretam engarrafamentos e colisões. Por que seria
diferente no espectro de radiodifusão?

Kevin Werbach deixa claro que o espectro é diferente. As novas
tecnologias permitem evitar o que muitos denominam de “a tragédia das
terras comuns”. “O espectro aberto” é um termo do guarda-chuva para
inúmeros dispositivos não-licenciados de ocupação do espaço de
transmissão. Uma dessas tecnologias permitiu que WiFi (wireless fidelity,
um tipo de conexão de computadores sem fio) florescesse na faixa de 2.4
gigaHertz. Outra possibilidade é o mecanismo não licenciado, conhecido
co­mo underlay, tecnologias em faixas existentes que não interferem nos
usos licenciados. Uma transmissão underlay pode ser realizada com um
sinal extremamente fraco ou empregando os rádios ágeis, capazes de
identificá-la e mover-se em torno das transmissões conforme essas vão
mudando à procura de faixas não saturadas.

Estamos no começo de uma mudança radical do paradigma wireless (conexão
sem fio), defende Werbach. As novas tecnologias prometem substituir a
escassez pela abundância, e trocar os terminais burros pelos 
rádios inteligentes, capazes de adaptar-se a seus arredores. Assim, os
governos poderão definir licenças flexíveis de uso das ondas de rádio.
Isso permitirá uma verdadeira reforma agrária no ar e o fim de uma
espécie de “capitanias hereditárias” do espectro.


Sem exclusividade

Esses avanços são indispensáveis para a democratização das
comunicações. Pense que o paradigma do wireless estático pode ser
substituído pelo dinâmico, com o uso de dispositivos inteligentes que
ocupam a faixa menos usada para transmitir e que têm aparelhos de
recepção que acompanham essa transmissão conforme ela se altera.

Pense seriamente na implantação do espectro comum. Pense no fim dos
monopólios da comunicação unidirecional. Já temos experimentos técnicos
em andamento. Avaliar essas possibilidades é fundamental, neste ano em
que novos legisladores serão eleitos e, necessariamente, terão que
reformular o Código Brasileiro de Telecomunicações, um regulamento da
década de 1960. Pense nas possibilidades dessa mudança de paradigma.
Pense um pouco no que Kevin Werbach afirmou: “As tecnologias digitais
de hoje são inteligentes o bastante para distinguir sinais, permitindo
que os usuários compartilhem as ondas de rádio sem a necessidade de
concessões exclusivas para empresas de radiodifusão.”


werbach.com/docs/RadioRevolution.pdf • Para ir mais longe, leia “Radio Revolution. The Coming Age of Unlicensed Wireless”.