raitéqui
Redes comunitárias de alcance local
Essas estruturas, que podem ou não oferecer acesso à internet, têm maior importância pelo aspecto de construção local e de troca entre vizinhanças.
Felipe Fonseca
ARede nº 100 – setembro/outubro de 2014
Costuma-se associar o uso da internet ao encolhimento das distâncias. De posse de um aparelho conectado à rede, estaríamos todos em contato direto com pessoas em qualquer parte do mundo. Mergulhando em um universo de afinidades eletivas, poderíamos dessa forma nos distanciar dos problemas da realidade imediata e conviver somente com pessoas que nos entendem. Essa é uma crença fácil de desconstruir objetivamente, mas é importante prestar atenção aos efeitos que carrega. Esse tipo de pensamento altera nossa relação com os espaços. Se é verdade que o que é distante está perto, o que acontece com o que está perto?
Uma das características da revolução industrial iniciada há mais de dois séculos foi a tendência à alienação, distanciando as pessoas do conhecimento integral a respeito daquilo que faziam. Ou seja: cada indivíduo transforma-se em uma engrenagem de produção que nunca tem uma visão geral dos processos em que está inserido, como o Chaplin de Tempos Modernos, que repete tarefas à exaustão sem ter sequer noção do que está ajudando a fabricar.
Se essa tendência pode ser percebida em toda a sociedade contemporânea, está ainda mais presente na relação das pessoas com as tecnologias de informação e comunicação (TICs). Pouca gente sabe que a rede funciona sobre computadores físicos, que ocupam espaço no mundo, gastam energia e trocam informação através de fios e fibras que existem extensamente no planeta.
Em contraponto a essa tendência de tratar as redes digitais somente com distanciamento e abstração, diversas iniciativas tentam aproximá-las das pessoas. Como as chamadas redes autônomas ou redes locais, que inserem um elemento importante de comunidade à troca de dados entre computadores interconectados. Projetos como o Guifi.net (Catalunha), Freifunk (Alemanha), Funkfeuer (Áustria) e muitos outros criam e tornam disponíveis redes sem fio comunitárias, que podem ou não oferecer acesso à internet mas cuja maior importância reside na centralidade do aspecto de construção local e de troca entre vizinhanças.
Um dos elementos que conferem genialidade à internet é sua grande expansibilidade. Equipamentos que se comunicam pelo protocolo TCP/IP podem criar redes interconectadas, ou mesmo autônomas, com pouco esforço adicional. Em outras palavras: com alguma dedicação, um simples roteador sem fio comprado em qualquer supermercado pode criar uma rede local que funciona como se fosse a internet, mesmo em lugares onde a rede não está acessível. Utilizando-se software livre dentro de uma rede local configurada dessa forma é possível oferecer plataformas e serviços de comunicação que reproduzem o funcionamento da internet [Saiba como configurar um servidor autônomo em uma rede local utilizando software livre: http://nuvem.tk/interactivos12/index.php/RedesAutonomasMontandoRedeAutonoma]. O alcance disso é que, ainda que a internet represente usualmente um grande distanciamento entre quem a acessa e seu entorno imediato, os mesmos protocolos que a estabelecem podem ao mesmo tempo funcionar como elementos de conscientização local e troca de conhecimentos com o entorno.
As redes comunitárias quase sempre têm pontos de contato com a internet, mas é frequente que dêem ênfase ao conteúdo oferecido localmente. Ao contrário das redes sem fio estruturadas que dependem de um servidor central, nessas redes os computadores conectam-se diretamente uns aos outros. As redes mesh já foram postuladas como estruturas essencialmente democráticas e participativas, que dariam abertura a uma comunicação radicalmente distribuída uma vez que não se dependeria de provedores de acesso centralizados. Os protótipos do projeto OLPC concebido pelo Media Lab do MIT (e posteriormente implementado em piloto no Brasil no programa UCA – Um Computador por Aluno) prometiam vir com a possibilidade de redes mesh que conectariam diretamente os laptops das crianças, mesmo quando elas estivessem longe da escola.
Na prática, entretanto, as redes mesh são pouco confiáveis como ferramenta de conectividade direta entre usuários, por causa da falta de padronização – especialmente em equipamentos fabricados por empresas que não liberam o código-fonte de seus drivers. Por outro lado, a possibilidade técnica das redes mesh e dos protocolos de gerenciamento de redes desestruturadas que implementam concretamente essas redes ensejou o surgimento de redes híbridas, nas quais se instalam sistemas operacionais customizados em roteadores acessíveis a qualquer pessoa. Estes roteadores utilizam a tecnologia mesh para conectarem-se entre si, e assim expandem o alcance de redes locais. Oferecem assim a possibilidade de, ao mesmo tempo em que o usuário compartilha sua rede com os vizinhos, também ter acesso a conteúdo só disponível localmente.
Há muitos outros projetos interessados em utilizar as redes distribuídas como ferramenta de comunicação comunitária. No Brasil, existe hoje uma lista de discussão ligada à rede catalã Guifi.net. Mais de doze anos atrás, uma das primeiras propostas que culminaria com a criação da rede MetaReciclagem – um e-mail redigido por Daniel Pádua – já falava em redes sem fio autônomas rodando em cima de computadores reutilizados. Outros desenvolvimentos recentes como o B.A.T.M.A.N [goo.gl/U9CGlA], ServalMesh e ProjectSPAN / Manet tratam da tentativa de conectar celulares e tablets em redes e oferecer serviços de comunicação mais complexos. Estão engatinhando, mas têm muito futuro. Ainda mais em tempos de uma preocupação cada vez maior com privacidade, segurança de dados e proteção contra o monitoramento estatístico de comportamento de usuários de redes.
Felipe Fonseca é coordenador do núcleo Ubalab. Organiza o Tropixel e leciona na Escola Técnica Municipal Tancredo de Almeida Neves.