Um mal necessário?
O argumento de que é preciso estar onde todos estão é perigoso porque implica apoiar aqueles que são alvo da militância.
texto Anahuac de Paula Gil | ilustração Ohi
ARede nº 92 – julho/agosto de 2013
Depois do primeiro impacto do PRISM jogado na cara de todos, é hora de avaliar a gravidade do monitoramento ostensivo feito pela Agência Nacional de Segurança (na sigla em inglês, NSA) dos Estados Unidos, com a conivência de Microsoft, Apple, Facebook, Google e outras menos importantes (ver página 44). É claro que a culpa é da NSA, mas a conivência também é crime, fazendo essas empresas tão culpadas ou mais do que o próprio governo estadunidense. Veja bem: a NSA não prometeu sigilo ou garantia da sua privacidade. Já essas empresas juram, assinam e garantem total sigilo e proteção dos seus dados, exceto para traçar perfis de consumo.
A maioria dos usuários desses serviços devassos pouco se importa com a privacidade de seus dados. A premissa é: “não tenho nada a esconder, qual é o problema que me monitorem?”. Se houvesse uma forma simples de explicar o quanto isso está errado, eu o faria. Esse é o discurso que os agentes de monitoramento usam historicamente para invadir a privacidade alheia. Na época das ditaduras militares na América Latina, esse era o slogan utilizado pelas forças torturadoras para invadir a casa de quem desejassem, na hora que bem entendessem. Se era um “cidadão de bem” não havia o que temer. O problema está na definição de “cidadão de bem” e de quem a cunha. Nos tempos modernos, a falácia ganhou requinte e status: quem não se deixa monitorar é paranoico, está à margem. Esse fenômeno também é percebido quando se trata de licenças de software.
Ninguém paga, ninguém viu, não se toca no assunto, e, se você o fizer, imediatamente é desqualificado como paranoico ou desajustado. Não se trata do que você pode mostrar ou não, mas do que outros jamais deveriam ver e saber. Especialmente governos e empresas.
Infelizmente, desse status não escapam nem os bastiões brasileiros da privacidade computacional. Todas as representações da sociedade civil organizada que lidam diretamente com TI utilizam as tais ferramentas e redes sociais devassas para fazer suas mensagens atingirem o grande público. O argumento de que é preciso estar onde todos estão é perigoso porque implica dar suporte direto, mesmo sem perceber, àqueles que são alvo de sua militância. O monitoramento e a invasão de privacidade é exatamente o negócio do Facebook, por exemplo. Combater essas ações é combater o próprio Facebook. Então, usar essa rede devassa para militar pela causa da privacidade e respeito aos direitos digitais é absolutamente inócuo. Ao fazer o trabalho de mobilização, mantém-se as pessoas que se quer ajudar presas em uma rede social que faz exatamente o oposto. É como convocar um congresso sobre higiene no meio de um lixão a céu aberto.
Com os cidadãos comuns convertidos pelas facilidades e joguinhos de fazendinha das redes sociais devassas, e com os ativistas cibernéticos paralisados pelo receio de perder seu canal de comunicação, estamos ameaçados de não reagir de forma contundente ao escândalo do PRISM. Estamos na eminência de dar carta branca ao governo e às empresas estadunidenses para que nos monitorem cada vez mais e de forma cada vez mais acintosa. Até o momento, organizações sociais e empresariais que se dizem ultrajadas pela iniciativa da NSA têm se limitado a fazer manifestos e dar entrevistas para a mídia. Algumas, mais afoitas, consideram fazer abaixo-assinados para pressionar os congressistas dos EUA a tomar medidas legais, mas isso só se aplica para os cidadãos estadunidenses, se vierem a ter algum tipo de efetividade. Honestamente, eu duvido. Aqui no Brasil, sequer isso.
E ações concretas? Nenhuma. Nem uma organização civil, nem mesmo no seio do Movimento do Software Livre, expressou de forma pública e concreta reação prática de oposição ao NSA, nem às empresas envolvidas. Nenhum tuitaço. Há vozes sopradas ao vento, como a minha, tentando trazer algum combustível para inflamar o debate e buscar alternativas, mas parece claro que não há interesse das partes em mudar a situação. Por um lado, os usuários continuam felizes em suas bolhas de monitoramento. Do outro estão as empresas, que obviamente não dão a devida seriedade ao caso. E no terceiro lado estão os ativistas convertidos, que insistem que usar as redes e sistemas proprietários devassos é um mal necessário.
Este é um momento histórico. O ano em que a rede inteira, em que cada cidadão conectado, decidiu se deixar monitorar de forma ampla e irrestrita. Assim, qual o sentido da militância pela privacidade e democratização da internet? De que adianta lutar pelo marco regulatório ou Marco Civil da Internet se cidadãos, ativistas e empresas concordam em conviver de forma harmônica, onde os conectados são o produto, os ativistas fazem de conta que não veem e as empresas faturam? Qual o sentido de tentar garantir qualquer direito digital? Se o Marco Civil servir para levar mais cidadãos para as redes devassas e suas aplicações proprietárias, será que vale a pena? Se a neutralidade da rede servir para que mais empresas que não respeitam privacidade nos façam cada vez mais dependentes, será que vale o esforço de implementá-la? Se os representantes da sociedade civil organizada são coniventes com as redes devassas e seus métodos, acreditando que mais vale usá-las do que enfrentá-las, será que vale a pena tê-los? Se toda a resistência forem posts em blogs e abaixo-assinados digitais, será que podemos, sequer, chamar de resistência?
Até agora, apenas manifestos e nada mais!
Anahuac de Paula Gil é nerd, hacker, professor e autor de livros de tecnologia. Integrante fundador do G/LUG-PB Grupo de Usuários de GNU/Linux da Paraíba, desenvolvedor do Projeto KyaPanel e ativista ferrenho das liberdades tecnológicas e direitos humanos.