Redes criativas costuram articulação

Ativistas de diversas expressões de arte debatem estratégias para consolidar a cultura digital como política pública   Patrícia Cornils


ARede nº 65 dezembro de 2010 –
Como definir a cultura digital brasileira? O tema do Fórum da Cultura Digital 2010, realizado entre 14 e 17 de novembro, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo (SP), é uma das muitas respostas possíveis a esta pergunta: “Uma Rede de Redes”. Com apoio do Ministério da Cultura (MinC), o fórum reuniu pessoas de todo o país que trabalham em cultura digital nos  mais variados aspectos: arte, educação, ativismo hacker, jornalismo, políticas de acesso a cultura, banda larga e informação; games; TV digital; militância por direitos civis e direito à comunicação na rede.
Um ponto de referência para entender o momento em que tudo isso se catalizou (porque o movimento da cultura digital havia começado muito antes) foi a reunião em que um grupo de articuladores explicou ao então ministro Gilberto Gil, em março de 2005, como e por quê o universo digital deveria ser incorporado ao projeto Cultura Viva, que criou os Pontos de Cultura. Um trecho dessa reunião pode ser ouvido na “Linha do Tempo da Cultura Digital”, lançada no fórum, onde correm, lado a lado, os acontecimentos marcantes da cultura digital no Brasil e no mundo. Disponível para consulta na internet, a linha mostra que, naquela reunião, o sociólogo Thiago Novaes explicou por quê os pontos de cultura deveriam ser digitais, por quê a iniciativa deveria usar software livre e fundamentou a proposta com ideias de protagonismo, autonomia e articulação em rede.

De lá para cá, uma das coisas mais importantes que o MinC fez foi reconhecer, nas gestões de Gil e de seu sucessor, Juca Ferreira, que a tecnologia é uma das dimensões culturais mais relevantes do mundo contemporâneo. “Eles entenderam essa pulsão do movimento das tecnologias digitais como extremamente importante para a cultura e realizaram ações concretas”, explica o sociólogo Sergio Amadeu da Silveira. “Um exemplo são os editais para a produção de games. Ou seja, houve o reconhecimento prático da existência de uma nova linguagem audiovisual, uma nova estética”. No ato de reafirmação da cultura digital brasileira, no último dia do evento, Amadeu lembrou que as iniciativas do MinC recuperaram o software livre como “um movimento técnico-social” e levaram o software livre para produtores culturais que usavam ferramentas proprietárias. Ao mesmo tempo, trouxeram as demandas dos artistas para as comunidades de software livre. “Precisamos aprofundar isso, apoiar o desenvolvimento de ferramentas culturais livres, ter mais tecnoartistas e mais comunidades envolvidas nisso”, disse ele.

No encerramento do fórum, em um ato que recuperou a trajetória do Ministério da Cultura e das redes da cultura digital, Cláudio Prado, presidente do laboratório Brasileiro de Cultura Digital, enumerou iniciativas consideradas fundamentais, como resultado dos debates: pensar no Plano Nacional de Banda Larga como uma oportunidade para fazer a cultura digital chegar à população, no último metro das conexões, com educação em multimídia e ferramentas livres; aplicar recursos públicos no desenvolvimento de software livre, “porque isso representa autonomia cultural”; aprovar um marco civil para a internet, com garantias de direitos dos internautas e de neutralidade da rede; participar do debate sobre as tevês e rádios públicas e sobre o futuro da tevê digital; aprovar uma lei de direitos autorais que amplie o acesso a bens culturais; digitalizar acervos culturais do país e criar recursos educacionais livres.

Todos esses temas foram discutidos no seminário, na arena, nas rodas de conversa do fórum. E têm algo em comum: extrapolam os limites do MinC, levando as questões da cultura digital a outros fóruns, como o da legislação sobre a internet, o acesso à banda larga, a aplicação de recursos em comunidades de desenvolvimento de software livre, a democratização da comunicação.

A consolidação desse novo cenário, concluíram os ativistas participantes do fórum, está a cargo da “rede das redes”. “A ação de cultura digital que nós todos construímos na sociedade brasileira está viva e pujante”, constatou Cláudio. Para ele, “o chão da cultura digital é um chão público, construído pelo governo e pela sociedade civil”. Os debates do fórum se realizaram no momento em que começou, no governo federal, a discussão sobre a transição do governo Lula para o governo de Dilma Roussef. Ninguém sabia, naquele momento, quem iria suceder Juca Ferreira. Mas a tônica, no encontro, não foi a sucessão ministerial. A continuidade do amplo movimento que o MinC ajudou a desenvolver depende, na verdade, das articulações dessa enorme rede. E foi isso que se fez durante os dias do fórum.

O Bailux, comunidade que realiza metareciclagem em Arraial d’Ajuda, na Bahia, fez contatos para novos projetos: rádio livre dentro da aldeia Pataxó; criação de uma residência hacker, capacitação em software livre para mulheres indígenas com o pessoal do movimento Fora do Eixo. O Puraqué, de Santarém, também começou conversas com o pessoal do movimento Fora do Eixo, com coletivos de favelas do Rio de Janeiro, com a Casa dos Meninos de São Paulo. “Temos muito que aprender com as experiências dessas galeras na busca pela nossa sustentabilidade”, disse Jader Gama, do Puraqué. “E creio que temos o que ensinar, com nosso idealismo”, acrescentou.

Gama participou do primeiro encontro presencial do Grupo de Estudos Educar na Cultura Digital. Voltado a inciativas em escolas de educação formal, o grupo compartilhou experiências com outras redes educativas – Recursos Educacionais Abertos (REA), Rede Mocambos, Puraqué. No blog do grupo, o professor José Carlos Antônio, mediador, destacou: “Antes, os educadores não tinham acesso à cultura digital, não a vivenciavam em suas práticas. Hoje, começam a vislumbrar possibilidades”. “Estavam presentes professores – com uma visão bem pragmática do que são recursos educacionais abertos no chão da escola; editores – com preocupações comerciais e logísticas; pesquisadores – com um viés mais investigativo e comparativo dos temas; gestores de diferentes projetos e pessoas que se encaixavam em mais de um perfil. Os temas abarcaram desde a necessidade de produção massiva de conteúdo em língua portuguesa (e como tornar isso viável) , passando por um tira-dúvidas bem prático sobre como licenciar materiais de educandos, até como a cultura digital pode estar em toda a produção de conhecimentos na escola, e não só nos recursos e conteúdos”, diz o blog do REA.

No Newscamp, onde se debateu jornalismo digital e colaborativo, “o jornalista Marcelo Soares (MTV), especialista em RAC (Reportagem com com Auxílio do Computador, nome que gerou polêmica), organizou uma planilha com todas as obras do PAC”, reportou o blog do Newscamp. “A ideia seria tentar construir o que já foi feito nos Estados Unidos, que é uma interface colaborativa de acompanhamento das obras do governo. Nenhuma redação tem capacidade para investigar todas as 2.600 obras, mas os cidadãos poderiam. Cada um poderia ser uma espécie de fiscal do PAC. A Esfera, de um lado (Pedro Markun e Daniela Silva), a FLi Multimídia, de outro (Andre Deak e Felipe Lavignatti), que são algumas das empresas integrantes da Casa da Cultura Digital, decidiram levar adiante o projeto e integrá-lo à rede Transparência
HackDay. Quem quiser participar desse projeto, junte-se à rede”.

Movimento de escala
Há muitos exemplos como esses, que são parte da explicação de por quê a cultura digital brasileira é potente e está viva. José Murilo Júnior, coordenador de Cultura Digital no MinC, contou que, quando vai para o exterior, precisa explicar “por quê a tal cultura digital brasileira tem essa cara”. “Eles buscam entender qual foi a mágica, a alquimia que aconteceu. O [John Perry] Barlow diz que o Brasil é um ponto naturalmente conectado, e aí, quando há infraestrutura, você cria um movimento de escala incrível”, disse ele ao caderno Link, de O Estado de São Paulo. Barlow, fundador da Eletronic Frontier Foundation e ativista das liberdades na internet, participou do fórum.

A trajetória da cultura digital brasileira é vibrante, mas acidentada. No fórum, ativistas, Pontos e Pontões de Cultura Digital criaram o Movimento Cultura Digital, para desenvolver ações autônomas – leia-se mais independentes de recursos públicos. Uma das raízes do movimento é a dificuldade de 40 Pontões de Cultura renovar seus convênios com o MinC, apesar de terem sido convidados pelo ministério a fazê-lo, no ano passado. Sem recursos, continuam tocando suas atividades, mas com novos problemas a enfrentar (ver página 38).

Alfredo Manevy, secretário de Políticas Culturais do MinC, ressaltou que a cultura digital representa, com outras políticas do ministério, “a constituição de um espaço público de debate qualificado”. “Vivíamos um complexo colonial na vida cultural brasileira”, constatou. “Agora sabemos que a diversidade e a força da cultura do país é um patrimônio e que com ele podemos construir uma nova sociedade”, reforçou. John Perry Barlow disse, em uma das entrevistas que concedeu durante o fórum, que o otimismo é sua própria recompensa. Foi isso o que se viu na ágora da cultura digital brasileira, durante o fórum. As dificuldades existem, mas a rede da cultura digital brasileira está construindo, ativamente, essa nova sociedade.

culturadigital.br
http://linhadotempo.culturadigital.org.br

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