Ser ou não ser?

Os projetos buscam modelos de governança e processos de tomada de decisão que preservem princípios de autogestão


Os projetos buscam modelos de governança e processos de tomada de decisão que preservem princípios de autogestão


Os ambientes colaborativos diferenciam-se pela participação democrática
de todos os integrantes da comunidade na produção de seus conteúdos.
Muitos defendem a autogestão e o “fim dos intermediários” no controle
das informações. Mas isso é possível? Por razões diferentes, tanto
Estúdio Livre quanto o Overmundo, abertos à publicação de obras
culturais, atravessam, neste momento, um debate interno sobre
governança. Isto é, os processos para as tomadas de decisão e a relação
entre os membros da comunidade.

No EL, o tema foi provocado por uma proposta de trabalho dirigida a um
dos seus integrantes; e pelo convite feito ao projeto para concorrer a
um prêmio internacional, o Prixars, no valor de 5 mil euros. “O que
fazer com o dinheiro? Quem decide? Como decide? Estão acontecendo
várias coisas e o EL necessita estruturação urgente, para algumas
definições”, afirma Fabianne Baveldi, voluntária do site.

O Overmundo, por sua vez, prepara-se para o fim do patrocínio da
Petrobras, previsto para dezembro. Contratados para um ano e meio (até
meados de 2007), os recursos (R$ 2 milhões) vão render mais seis meses.
“Nosso trabalho, este ano, é encontrar maneiras de manter o projeto.
Temos várias propostas de parceria e uma já fechada com iG, que está
colocando links do Overmundo na sua home. Também vimos
que órgãos de imprensa se interessam pelos conteúdos. E o Overmundo
poderia funcionar como uma agência de informações”, imagina Hermano
Vianna, uma dos lideranças do site.

Além da definição se ativistas que estejam desenvolvendo consultorias remuneradas com os conhecimentos obtidos no site
devam contribuir financeiramente para ele, a intenção de inscrever o
Estúdio Livre em leis de incentivo ou prêmios esbarra na dificuldade
para indicar representantes legais, destinação de recursos, etc. Outro
risco da informalidade é precisar se associar a entidades juridicamente
constituídas (como o próprio IPTI, que contrata os bolsistas dedicados
ao EL, com recursos do MinC), com as quais nem sempre os ativistas
concordam. Fabianne espera reunir integrantes do site no Fórum Internacional do Software Livre (Fisl 8.0), de 12 a 14 de abril, em Porto Alegre, para discutir esses e outros temas.

Lurkers e supervacas

Atualmente, o processo decisório do EL acompanha a tendência dos
ambientes colaborativos. Tem mais poder, quem participa mais. A lista
de discussão do site tem cerca de 200 integrantes – uns 30 mais atuantes, calcula a pesquisadora. “A grande maioria é de  lurkers”,
diz, referindo-se aos que só observam, e raramente se pronunciam. No
Estúdio Livre, sete pessoas administram listas de dicussão, três tomam
conta de e-mails e 14 têm poderes de “supervaca”. Isto é, são
administradores e moderadores de conteúdo. “O termo supervaca é uma
brincadeira da equipe do apt-get, que vem a ser um dos programas em
linha de comando mais usados no Debian (distribuição GNU/Linux)”,
ensina Fabianne.

No Overmundo, há uma política editorial baseada na aprovação da
maioria, no gosto dos leitores. A pessoa se cadastra e pode publicar
seus conteúdos nas várias seções. Antes, porém, as obras ficam 48 horas
numa fila de edição, para serem comentadas. Os usuários cadastrados
podem sugerir correções, novos enfoques, acertos de ortografia, mas só
o autor pode modificar o texto. Depois desse prazo, a colaboração vai
para a fila de votação. Se atingir 40 overpontos (ou votos), é
publicada. Se não, continua no site, mas apenas no blog/perfil
do usuário. Se for publicada, continua a ser votada, mas os pontos
passam a ser calculados numa função do número de votos e do tempo que
está online (em que o tempo reduz os pontos). “A comunidade
decide o que vai ser publicado e o que vai ser destaque; mais pontos,
vai para o home”, garante Hermano.

Mesmo assim, há um grupo de elite. Cinco “overmanos” têm o direito de
remover conteúdos, entre eles o próprio antropólogo. Além disso, os
mais atuantes têm um sistema de carma: quanto mais você participa, mais
peso terá o seu voto. “Aqueles 30 de maiores carmas formam o Conselho
que discute os rumos do Overmundo”, esclarece Hermano. Segundo ele,
estudos da web 2.0 estimam que apenas 10% dos cadastrados nos sites participam do seu dia-a-dia. No Overmundo, são cerca de 20%. O sistema de carma e o conselho são tentativas de governança. “O site foi criado por uma equipe, e ela continua. Mas a idéia é que desapareça e a comunidade ande com suas próprias pernas”.

Em um ano de atividade, o processo de produção do Overmundo evoluiu. Na sua formação, os recursos do site financiaram, além de quatro criadores, e quatro pessoas que trabalham no dia-a-dia do site, 28 colaboradores nos diferentes estados. Agora, Hermano está convencido de que o site precisa cada vez menos de conteúdo pago. Calcula que mais de 80% do que é publicado vêm de forma espontânea.

Saber é poder

De acordo com o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, não tem
escapatória: quanto mais você participa, adquire, pelos seus méritos, status
maior. “Não significa que a pessoa não será corrigida. Há processos
internos de autocrítica”. Ele acredita que a quantidade de
colaboradores é fundamental para obter qualidade. “Dessa massa de
participações emergirão os que colaboram com mais precisão, como no software
livre”. Nos ambientes proprietários, compara Sérgio, o conteúdo será
contratado ou distingüido pela “meritocracia paga” do estúdio ou da
gravadora. “Diferente do meio aberto, onde pesa a meritocracia da
comunidade hacker, em que não basta se autodescrever, tem que
ser um hacker de qualidade. É por meio da participação que se ganha
reputação”, explica.

Esse sistema também tem, contudo, contradições. “No início do ano
passado (quando se desligou do IPTI), tive uma briga feia sobre ‘o quem
faz manda’. Porque as pessoas que ganham para fazer, mandam. A pessoa
que não está remunerada não consegue ter tanta interferência por uma
questão capital. A gente quer que se constitua uma comunidade em
relação ao consenso, e não ao capital”, insiste Fabianne. A crise foi
resolvida e ela diz que o site saiu fortalecido. O processo decisório
do EL é simples: “se alguém tem uma idéia, e  ninguém a contesta
com firmeza, ela acontece”. Mas a pesquisadora admite que algumas
questões — como as que envolvem dinheiro — vão exigir mais do que isso:
“esse é o maior desafio, no curto prazo, para a comunidade”. Para
Sérgio Amadeu, governança é consenso. “Inserir processos de decisão,
baseados em consenso e em alguns princípios democráticos”, recomenda.

Interfaces mais fáceis

A maior participação, a reputação e o mérito adquiridos na rede estão,
em geral,  mais ao alcance dos que têm familiaridade com os softwares.
“O preço da liberdade é conhecimento do mundo digital. O preço da
autonomia é o conhecimento. Sem ele, é uma autonomia reduzida,
inevitavelmente”, diz o pesquisador Sérgio Amadeu. Hernani Dimantas,
ativista do MetaReciclagem e coordenador do Laboratório de Inclusão
Digital e Educação Comunitária- Lidec (na USP), concorda. “O domínio
técnico, em termos de cultura cibernética, também faz diferença. Quem
quiser autonomia real precisará dominar o código”.

Para evitar essa concentração de poder, Sérgio indica o aperfeiçoamento
das interfaces digitais e o compartilhamento do saber, um valor da
ética hacker.
“Se avançarmos na melhoria dos códigos, poderemos ter uma alternativa
extremamente importante para a cultura que se desenvolve nas práticas
colaborativas em rede. Ao se popularizarem as interfaces dos softwares
de áudio e vídeo, e das ferramentas colaborativas, teremos uma explosão
de conteúdos.” Um pouco, compara ele, com o que aconteceu com a foto.
“A diversidade apareceu. Mas, quanto menos gente souber ler e escrever,
menos literatos teremos.”

O Overmundo busca essa diversidade. “Tudo tem que ser muito fácil e simples, porque a finalidade do site
não é ele mesmo, mas divulgar a produção dos artistas”, destaca Hermano
Vianna. Já o EL, até por sua origem, tem um usuário mais técnico. Mas a
equipe do site dedica esforço crescente de desenvolvimento de interfaces e de simplificação do uso do site.
Também realizam oficinas que tratam da internet como ferramenta de
autopublicação e, especificamente, do Conversê e do EL. Além dos
Encontros de Conhecimentos Livres, oficinas que o MinC promove para os
Pontos de Cultura.