Software Livre:os desafios da gestão

Nos projetos de inclusão, ninguém discute mais. O software tem de ser livre. O que está em pauta, agora, é como fazer a gestão sem perder a liberdade de alterar os programas.

LIa Ribeiro Dias e Patrícia Cornils

ARede nº65 dezembro de 2010 – Ao colocar em marcha o Telecentros.BR – que vai reequipar 3 mil telecentros, implantar outros 6 mil novos, e treinar entre 12 mil e 16 mil monitores-bolsistas –, os gestores do programa constataram a necessidade de um esforço coordenado para integrar, de alguma forma, os sistemas de gestão das redes existentes. Afinal, o programa vai precisar captar dados nas diversas esferas e, para isso, os sistemas de gestão precisam de interoperabilidade. Uma pesquisa lançada em novembro, pelo Observatório Nacional de Inclusão Digital (Onid), teve como objetivo exatamente traçar o mapa dos sistemas de gestão de telecentros que estão sendo utilizados pelas redes.

Só a partir da coleta desses dados é que será discutido o modelo a ser adotado como padrão em todas as unidades. Cristina Mori, a Kiki, coordenadora executiva do Telecentros.BR, acredita que o grande desafio será conciliar a demanda que o programa vai ter de informações sobre a gestão dos telecentros (das máquinas e conexões aos acessos e tipo de uso) com a garantia da liberdade de uso da tecnologia, permitida pelo software livre. A tarefa não é fácil: quanto mais se padroniza o sistema de gestão, mais se engessa o uso dos softwares.

Como aliar a necessidade de informações gerenciais específicas com procedimentos de formação que estimulem a experimentação das potencialidades do software livre nos programas de inclusão digital é o próximo debate que deverá mobilizar gestores e monitores. “Os telecentros não são uniformes. Dentro de cada projeto há problemas distintos. Os detalhes fazem a diferença. Não se pode ter um modelo centralizado, tem que ser um modelo tipo web”, afirma Vanessa Branco, que há seis anos trabalha com software livre para inclusão digital. Ela foi uma das coordenadoras do desenvolvimento do Berimbau, sistema de gestão inicialmente utilizado na rede de telecentros do estado da Bahia (hoje, denominado Vida, o sistema integra o Acessa Berimbau, o sistema de implantação e o de baixar softwares livres da internet). Vanessa também é voluntária no desenvolvimento da Rede Brasil Digital (RDB), um sistema de gestão feito para ser usado em vários projetos e que será implantado nos telecentros do projeto Territórios Digitais, do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Como Kiki, Vanessa entende que é preciso fazer uma construção coletiva bem estruturada, aproveitando o conhecimento tecnológico acumulado ao longo dos últimos anos nas diferentes redes de telecentros, como as da Bahia, do Pará e de São Paulo. No entanto, alerta que não é recomendável unificar os sistemas operacionais e de gestão: “O foco do RDB é um banco de dados integrado. Cada um pode fazer sua opção pelo sistema operacional e de gestão e aprender a dar suporte ao sistema adotado”.

A nova pauta de discussão mostra como ficou distante o tempo em que o eixo central do debate era que tipo de software adotar, livre ou proprietário. “Hoje, 99% das redes optam pelo software livre. E isso se deve muito à diretriz do governo federal, de 2003, que estimulou o uso não só nos programas próprios, mas pelos estados e demais parceiros. O código aberto facilita a apropriação da tecnologia pelo usuário, contribui para a sua autonomia e não dependência de sistemas”, explica Kiki.

Há exceções, porém, dentro do próprio governo federal. O curso de alfabetização digital do programa Projovem Trabalhador, do Ministério do Trabalho e Emprego, que faz a qualifição profissional de jovens, usa software proprietário. O parceiro nessa área é a Microsoft, que oferece o curso de introdução à informática por meio da web. Mas o conteúdo das 350 páginas pode ser baixado tanto por usuários do Windows como de plataformas livres. “Apesar da diretriz, cada ministério é autônomo para adotar a sua política. Nosso trabalho é convencer pelo diálogo”, diz Kiki.

Os pioneiros no uso do software livre nas redes de telecentros se recordam dos debates acalorados sobre a opção do sistema, mas dizem que a resistência dos usuários, por se tratar de programas novos e unidades em áreas carentes onde praticamente não havia computador, foi muito menor que a enfrentada dentro da administração pública. Márcia Schuller, secretária municipal de Tecnologia da Informação e Inclusão da prefeitura de Novo Hamburgo, foi responsável pela implantação dos primeiros telecentros da rede do Paranavegar. E lembra do “movimento radical” que aconteceu na primeira gestão do governador Roberto Requião, em 2003, quando da opção pelo software livre: “Foi alterada toda a produção de serviços de atendimento do governo. Foram substituídos os softwares dos desktops e redes, e a própria fábrica de sistemas passou a ser feita em software livre”.

O software público e o software livre, para Márcia, têm muitas semelhanças:  a necessidade de compartilhar os desenvolvimentos para economizar recursos e de customizar o sistema para adequar às necessidades do usuário – uma prefeitura, por exemplo. “Se fazia sentido usar software livre na administração pública pelas liberdades intrínsecas de um software de código aberto e pela economia de licenças, muito mais sentido fazia usá-lo em um programa de inclusão digital onde você está formando as pessoas para usar as ferramentas de TI, o computador e a internet. O
software livre ajuda na percepção do funcionamento da máquina porque permite a customização, ou seja, você faz sua máquina mais parecida contigo. O que eu percebi, na minha experiência com telecentros, é que as pessoas formadas em software livre ficam mais abertas a receber diversos tipos de serviços”, conta ela.

Superioridade técnica
Muito mais do que a economia com licenças proprietárias – uma vez que a Microsoft tinha, como ainda tem hoje, uma política especial de preços para governo –, o que levou o então analista de sistemas da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Informação (Secti) do estado da Bahia, Cristiano Barreto, a defender a adoção do software livre, foi a superioridade técnica. “Testei as duas plataformas e verifiquei que o Linux oferecia ganho de escala com baixo custo de manutenção. Também era mais estável e permitia um ambiente mais limpo, sem vírus. Por ser menos conhecido, limitava mais as alterações de configuração do sistema nas unidades, no momento em que o programa ia começar. Fiz uma defesa técnica e consegui apoio”, relata ele, que foi coordenador de TI do programa no governo Paulo Souto (então PFL) e hoje é o diretor administrativo da Secti. “O que pesou na decisão a favor do software livre foi o custo de gestão, a independência tecnológica e a adequação ao modelo do projeto”, reforça Barreto.

Como não era um usuário de plataforma livre nem tinha equipe dentro da Secti, a opção de Barreto foi contratar uma empresa, incubada na Universidade Federal da Bahia, para desenvolver o sistema de gestão de telecentros Berimbau, que foi implementado, em um primeiro momento, sobre a distribuição Conectiva, do Linux. Em função das dificuldades enfrentadas e na busca por profissionais que conhecessem a plataforma, a equipe da Secti – já eram dois técnicos – se aproximou do pessoal do PSL Bahia, que, em janeiro de 2004, sugeriu trocar a plataforma para a distribuição Debian. Montou-se uma equipe interna para desenvolvimento do sistema. Em julho de 2004 foi inaugurado o primeiro telecentro, no Pelourinho. Havia recursos para 192 telecentros e pretendia-se implantar mais 200. Hoje, o programa, que foi reformulado e acelerado no governo seguinte, de Jacques Wagner (PT), tem mais de mil unidades.

Economia de custos (especialmente com a adoção de estações diskless), escalabilidade, eliminação dos problemas com vírus e customização foram os motivos que levaram o Acessa São Paulo, programa de inclusão do governo do estado de São Paulo, então com 159 postos, a migrar do Windows para o Linux, em 2005. Hoje, são 605 postos em funcionamento, e o sistema Acessa Livre, que inicialmente adotou o sistema operacional Conectiva, roda sobre o Ubuntu. A cada versão, o sistema tem mais a cara do programa, de acordo com Daniel Bellot, coordenador técnico, que informa que toda a atualização é feita on-line. Além da customização, uma das principais qualidades do sistema é a comunicação permanente entre a coordenação do projeto e os postos, o que permite gerar dados de gestão. São pouco mais de 2 milhões de usuários, desde 2001. Outra questão relevante na gestão do programa apontada por Bellot, é o fato de a Prodesp, a empresa de processamento de dados do governo de São Paulo, parceira da Secretaria de Gestão no programa, ter uma equipe dedicada ao Acessa SP.

O Acessa Livre pertence à Prodesp, mas não tem licença proprietária. Não pode ser baixado pela internet; os interessados precisam solicitar o código à Prodesp. Segundo Bellot, a equipe do Acessa auxiliou o governo de Alagoas na implantação de seus telecentros e este ano cedeu o software ao governo daquele estado.

Qual software é livre?
Ao lado da necessidade de uma solução que permita ao Telecentros.BR ter acesso às informações dos sistemas de gestão das diversas redes, outro debate emerge, relacionado muito mais à formação que acontece na ponta. Começa a ganhar corpo a discussão em torno do que é, de fato, um programa livre.

Software livre, já se sabe, não é software gratuito; não se paga pela licença, mas uma implementação feita por terceiros pode ser cobrada. E há softwares de uso gratuito, mas não são livres, pois não têm o código aberto – como Hot Potatoes, um programa de construção de atividades da Half Baked Software, exemplo citado por Frederico Gonçalves Guimarães, gerente técnico do Centro de Recondicionamento de Computadores do Programa BH Digital. Para a Associação do Software Livre Brasil e seus militantes, o software livre é o que respeita as quatro liberdades definidas na licença GNU GPL (do inglês, General Public License): 1) liberdade de poder utilizar o programa; 2) liberdade de poder estudar o programa; 3) liberdade de poder modificar o programa; e 4) liberdade de poder redistribuir o programa.

As máquinas dos kits telecentros do Ministério das Comunicações (Minicom), já distribuídos a todas as prefeituras do Brasil, no primeiro contrato firmado (licitação vencida pela Positivo), e que vão atender ao Programa Telecentros.BR (licitação vencida pela CCE/Digibrás), são equipadas com o Metasys, “um conjunto de soluções tecnológicas baseadas em Linux”, como define a International Syst S.A. A empresa  foi criada em 2002, em Belo Horizonte, com recursos do Fundotec, administrado pela FIR Capital, que investe em empresas emergentes de base tecnológica. O fundo tem capital da Sumitomo Corporation, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), dos Sebraes de Minas Gerais e Nacional e, agora, da Valia e da Previ.

Mas surgiu uma polêmica em torno da solução Metasys. Por que as máquinas  estão sendo distribuídas com a orientação de que não se pode mexer? “Se não se pode alterar, então não é um software livre, pois deixa de ter uma das quatro liberdades da licença GPL”, questiona um técnico. Paulo Neuenschwander Maciel, presidente da Metasys Tecnologia, garante que “o código é livre e está no site do Minicom”. E completa: “O que eu presto é serviço de atualização”. O custo da garantia de atualização tecnológica é de R$ 10 por ano, por usuário, e o contrato da Metasys não é com o Ministério das Comunicações mas com o fabricante de hardware que venceu a licitação.

Se o código é livre, por que a orientação do Minicom é de que não seja alterado? A contradição tem a ver com a manutenção do sistema. Quando foi especificado o primeiro contrato pelo Departamento de Universalização do Minicom, conta Heliomar Medeiros de Lima, a equipe técnica chegou a analisar algumas customizações. Mas, diante do tempo necessário para avaliar várias plataformas, optou-se por deixar a cargo das empresas participantes o empacotamento das soluções de software. Só que a especificação obrigava a total abertura da solução após seis meses, para garantir a possibilidade de alteração. Com a transferência do programa para a Gerência de Projetos Especiais, a orientação mudou. No lugar de fazer a atualização internamente, o que demandaria uma equipe qualificada, optou-se por delegar a tarefa à empresa empacotadora. E a garantia da atualização depende da solução não ser alterada.

Para Medeiros, o ideal seria uma solução mista, que permitisse a atualização do software pelo fornecedor e, ao mesmo tempo, deixasse algumas máquinas com a solução aberta em cada telecentro, para que os alunos mexessem como quisessem. “Na inclusão digital, essa possibilidade tem de estar colocada, pois a alteração é um dado importante para a apropriação da tecnologia por aqueles que querem conhecer mais, fazer metareciclagem, experimentar”, avalia.

A Metasys fornece uma solução completa para telecentros – e tem também uma solução para escolas –, com um programa para a unidade e o software da central de monitoramento. Segundo seu presidente, no desenvolvimento da solução foram implementadas características de controle do uso e dos usuários especificamente para o Minicom, como a política de acesso a sites. A central de monitoramento é operada diretamente pelo Minicom e tem acesso a mais de 30 variáveis do hardware, do sistema, dos usuários e da navegação captadas pelos agentes de monitoramento instalados nos desktops. “O monitoramento é o grande diferencial do projeto do Minicom e agora vai ser usado pelo Telecentros.BR”, diz Maciel.

A Metasys já tem 6,6 mil sistemas instalados em máquinas da Positivo nos telecentros atendidos com kits fornecidos pelo Minicom e, agora, vai fornecer mais 15 mil sistemas para as máquina da CCE/Digibrás, que venceu a licitação da fase 2, e que já começam a ser instaladas. Diante dos  números envolvidos e de os kits serem destinados ao Telecentros.BR, certamente o conflito entre código aberto e orientação para não mexer no sistema Metasys vai ter de ser resolvido.

Linux predomina entre usuários mais maduros e mais escolarizados

É consenso entre os especialistas que o software livre propicia não só a independência tecnológica em relação ao fornecedor do programa mas a criação de uma nova cultura, a do compartilhamento e do trabalho em rede. “Trabalhando em rede a gente vê que a questão do suporte não pode ficar muito centralizada, senão os projetos não andam. Os projetos têm de gerar autonomia”, defendeu Thiago Novaes, na reunião de militantes com o então ministro da Cultura, Gilberto Gil, em 2005 – ocasião em que convenceram Gil a introduzir a cultura digital no Pontos de Cultura, um dos programas mais bem-sucedidos de inclusão digital do governo federal.

Apesar da importância do software livre dentro dos programas de inclusão digital, não há muitos estudos sobre o seu impacto na formação e na vida dos usuários. As avaliações dos programas ainda são incipientes, especialmente no que se refere ao uso do software livre. Uma das pesquisas foi desenvolvida por Benedito Medeiros Neto, consultor em inclusão digital do Ministério das Comunicações. Como parte de seu trabalho de doutorado, ainda em curso, ele realizou uma pesquisa quantitativa sobre o perfil dos usuários dos pontos Gesac e sobre seus hábitos de uso.

Os resultados foram apresentados no artigo “Uso de tecnologia e aesso à informação pelos usuários do programa Gesac e de ações de inclusão digital do governo brasileiro”, feito em parceria com Antonio Lisboa Carvalho de Miranda, e publicado na revista do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict – jan/jun 2010).  A pesquisa foi feita on-line e envolveu 3.570 pontos de acesso público à internet em escolas públicas, telecentros comunitários, instituições da sociedade civil e unidades militares que usam conexão Gesac.

Dos 12 mil questionários preenchidos, 9.224 foram considerados válidos. Os resultados revelam, no que se refere à utilização do Linux, que há uma variação grande em relação à faixa etária – à exceção dos idosos, quanto maior a faixa etária, maior o domínio – e ao nível de escolaridade – quanto maior a escolaridade, maior o uso. Já em relação às ferramentas de acesso à internet não se observou grande variação nem em relação à faixa etária, nem ao grau de escolaridade. O índice de “sei e aplico” oscilou de 73,7%, na faixa de 11 a 15 anos, para 84,2%, na faixa de 45 a 59 anos. E só cai para o patamar de 60%, acima dos 60 anos. Em relação à escolaridade, o desempenho foi semelhante.

A pesquisa também avaliou o nível de domínio no uso do Windows e verificou que  era muito maior do que o domínio do Linux, mais do que o dobro, até os 24 anos, caindo, a partir dessa faixa, mas mantendo-se à frente. O mesmo ocorre em relação à escolaridade. Apesar da prevalência do Windows no domínio pelos usuários dos pontos conectados pelo Gesac, Benedito Medeiros Neto explica que o cruzamento dos dados no uso dos diferentes softwares (por exemplo, o pacote Office, que roda sobre o Windows, e o Open Office, que roda sobre o Linux) permite inferir que há maior dificuldade no acesso dos softwares abertos. “Mas depois que o usuário domina o acesso, aumenta o domínio da ferramenta”, diz ele.

A pesquisa também verificou a forma de acesso à informação na internet e os sites mais procurados. Os resultados estão disponíveis em: http://revista.ibict.br/inclusao/index.php/inclusao/article/view/121/161
{jcomments on}