Stallman e suas propostas para acabar com a Guerra ao Compartilhamento

Para Richard Stallman, é preciso fazer propostas para legalizar a partilha de cópias digitais, em vez de deixar a iniciativa à indústria fonográfica e sua Guerra sem quartel Contra o compartilhamento.

25/08/09 – Miguel Caetano, autor do blog Remixtures, publicou ontem a versão em português de um artigo escrito por Richard Stallman, presidente da Free Software Foundation, sobre a Guerra ao Compartilhamento.

Stallman chama de Guerra ao Compartilhamento as iniciativas dos estúdios para combater o acesso a cópias digitais de músicas. O artigo fala sobre a origem do copyright e as razões para sua existência. E explica como a tecnologia digital, ao permitir que qualquer um faça e compartilhe cópias, serve à natureza humana de cooperação. A tecnologia superou, na prática, as leis de copyright.

Stallman acredita que deve-se tentar criar alternativas para legalizar o compartilhamento, em vez de simplesmente assistir à guerra sem quartel contra ele. Esta guerra acontece na forma de processos contra pessoas que copiam e compartilham músicas, na adoção de mecanismos de Gestão Digital de Restrições (DRM, na sigla em inglês) e na adoção de leis que restringem a liberdade de navegar na internet (acabando com o anonimato dos internautas e punindo os que baixam arquivos de músicas e outros conteúdos). “Em vez de permitir que persigam com sua Guerra ao Compartilhamento até que admitam que é inútil, devemos travá-la o quanto antes. Devemos legalizar o compartilhamento”.

O artigo é importante não apenas pela suas propostas, mas porque é mais uma contribuição para que os defensores da liberdade na internet compreendam os interesses em jogo e os mecanismos da disputa. Abaixo, uma versão para português do Brasil do artigo de Stallman, com os links originais.

Acabar com a Guerra do Compartilhamento
Richard Stallman

Quando a indústria fonográfica arma um escarcéu a respeito do perigo da “pirataria”, não se referem a ataques violentos a navios. Estão reclamando do compartilhamento de cópias de música, uma atividade da qual milhões de pessoas participam, em um espírito de cooperação. O termo “pirataria” é empregado pelos estúdios musicais para demonizar o compartilhamento e a cooperação, ao compará-los com sequestro, assassinato e roubo.

O copyright foi criado depois que a imprensa ter transformado a cópia em uma atividade de produção em massa, usualmente com fins comerciais. O copyright era aceitável nesse contexto tecnológico porque funcionava como uma norma industrial e não constrangia os leitores nem (mais tarde) os ouvintes de música.

Na década de 1890, a indústria fonográfica começou a vender gravações de música produzidas em massa. Estas gravações facilitavam o usufruto da música e de modo algum limitaram a audição de música. A expansão do copyright a estas gravações musicais foi pouco ou nada controversa, na medida em que apenas restringia as empresas dessa indústria, não os ouvintes de música.

A tecnologia digital dos dias de hoje permite que qualquer um faça e compartilhe cópias. A indúatria fonográfica procura agora usar o direito do copyright para nos negar o uso deste avanço tecnológico. Uma lei que era aceitável quando restringia apenas as editoras é hoje uma injustiça, porque proíbe a cooperação entre os cidadãos.

Impedir as pessoas de compartilhar vai contra a natureza humana, e a propaganda Orwelliana segundo a qual “compartilhar é roubar” cai habitualmente em ouvidos moucos. Parece que a única forma de impedir as pessoas de compartilhar é uma Guerra sem quartel Contra o Compartilhamento. Daí que a indústria fonográfica, por meio de seus braços jurídicos como a RIAA, processa adolescentes por centenas de milhares de dólares, por compartilharem. Enquanto isso, conspirações corporativas para restringir o acesso público à tecnologia desenvolveram sistemas de Gestão Digital de Restrições (DRMs, na sigla em inglês), concebidos para algemar os usuários e impossibilitar a cópia. Entre os exemplos incluem-se o iTunes e os DVDs e discos Blu-Ray (para mais informações ver DefectiveByDesign.org.) Embora estas conspirações violem os direitos dos consumidores, os governos são sistematicamente incapazes de levá-las a julgamento.

Não obstante estas medidas, o compartilhamento continua; o impulso humano de cooperar é forte. Por isso a indústria fonográfica e outros editores exigem medidas cada vez mais repressivas para castigar os partilhadores. Em outubro de 2008, os Estados Unidos aprovaram uma lei que prevê a apreensão de computadores usados para compartilhamento não autorizado. A União Europeia está avaliando a adoção de uma diretriz que contempla o corte da conexão de Internet de pessoas que foram acusadas (e não condenadas) de compartilhar; veja laquadrature.net caso pretenda se opor a isso. A Nova Zelândia já aprovou uma lei semelhante em 2008.

Numa conferência recente sobre cinema ouvi uma proposta para exigir das pessoas que provem a sua identidade caso queiram acessar a internet. Tal controle ajudaria a esmagar as vozes dissonantes e a democracia. A China anunciou uma política semelhante para os cibercafés. Será a União Europeia a próxima? Um deputado britânico propôs uma pena de prisão de dez anos para os compartilhardores. Isto não foi – ainda – aprovado.  Entretanto, no México as crianças são convidadas a denunciar seus próprios pais, à maneira soviética, em caso de compartilhamento não autorizado. A crueldade que a indústria do copyright adota em sua Guerra Contra o Compartilhamento parece não ter limites.

O principal argumento da indústria fonográfica para proibir o compartilhamento é que ele gera “perda” de empregos. Mas no fim de contas, esta afirmação não passa de uma mera suposição (1). Mesmo se fosse verdade, isso não justificaria a Guerra Contra o Compartilhamento. Deveremos proibir as pessoas de fazer sua própria limpeza doméstica para evitar a “perda” de empregos no setor de limpeza? Proibir as pessoas de cozinhar suas próprias refeições ou impedi-las de trocar receitas para evitar a “perda” de postos de trabalho no setor de restaurantes? Argumentos como estes são absurdos porque o “tratamento” é muito pior que a “doença”.

A indústria fonográfica também sustenta que compartilhar músicas tira dinheiro dos músicos. Isto é o tipo de meia-verdade que é pior do que uma mentira – sem contar que o grau de verdade, neste caso, é bem menor que metade.

Mesmo que aceitemos o pressuposto – frequentemente falso mas ocasionalmente verdadeiro – de que você teria comprado uma cópia da mesma música, apenas os músicos super-estrelas, com uma longa carreira, acabariam por receber parte de seu dinheiro. A indústria fonográfica intimida os músicos desde o início das suas carreiras, por meio de contratos com termos desvantajosos que os amarram aos estúdios por cinco ou sete álbuns. O número de cópias vendidas dos discos editados nos trâmites destes contratos raramente é suficiente para que os músicos recebam sequer uma parte em cem do valor arrecadado pelos estúdios. Para mais detalhes, consulte este link. À parte estas super-estrelas com uma longa carreira, o compartilhamento apenas reduz a receita que a indústria fonográfica usa para processar os fãs de música.

Em relação aos poucos músicos cujos contratos não os exploram, as super-estrelas com uma carreira estabelecida, não é um problema especialmente grave para a sociedade ou para a música eles ficarem ligeiramente menos ricos. Não existe qualquer justificativa para a Guerra Contra o Compartilhamento. Nós, o público, devíamos pôr um fim a ela.

Alguns argumentam que a indústria fonográfica nunca vai conseguir impedir as pessoas de compartilhar, que é impossível travar o compartilhamento (2). Dada a relação de forças assimétricas entre os grupos de pressão dos estúdios e os fãs de música, desconfio das previsões sobre quem irá vencer esta guerra. De qualquer modo, seria uma loucura subestimar o inimigo. Devemos pressupor que qualquer um dos lados poderá vencer e que o desfecho depende de nós.

Além do mais, mesmo que a indústria fonográfica não consiga esmagar a cooperação humana, ela já provocou bastante sofrimento ao tentar acabar com ela. E tenciona provocar muito mais. Em vez de permitir que continuam com a sua Guerra Contra o Compartilhamento até admitirem sua inutilidade, devemos travá-la o quanto antes. Devemos legalizar o compartilhamento.

Alguns dizem que a sociedade em rede não precisa mais da indústria fonográfica. Não apoio esta posição. Nunca pagarei por um download de música enquanto não o poder fazer de uma forma anônima. Por isso, prefiro comprar CDs anonimamente em uma loja de discos. Não desejo o fim dos estúdios musicais em geral, mas não vou desistir de minha liberdade para que elas possam continuar a existir.

O objetivo do copyright – nas gravações de música ou em tudo o resto – é simples: incentivar a criação e a arte. Trata-se de um fim desejável, mas existem limites para o que este fim pode justificar. Impedir as pessoas de compartilhar, em esfera não-comercial, é pura e simplesmente demais. Se queremos promover a música na era das redes informáticas, devemos escolher métodos adequados ao que queremos fazer com a música. E isto inclui a partilha.

Seguem-se algumas sugestões do que podemos fazer:

* Os fãs de certos tipos de música poderiam organizar clubes de fãs que apoiariam as pessoas que gostam desse tipo de música.
* Podíamos aumentar os fundos dos programas governamentais que apoiam o setor de música ao vivo.
* Os artistas poderiam recolher fundos para obras dispendiosas por meio de subscrições, em que os fundos seriam devolvidos caso a obra não fosse produzida.
* Muitos músicos recebem mais dinheiro com o merchandising do que com os discos. Se derem o salto para o financiamento baseado na venda de merchandising não terão qualquer razão para restringir a cópia; muito pelo contrário.
* Podíamos apoiar os artistas musicais com fundos públicos distribuídos diretamente a eles em termos proporcionais com a raiz cúbica da sua popularidade. Isto significa que se a super-estrela A é 1000 vezes mais popular do que o artista talentoso B, A irá receber dez vezes mais em fundos públicos do que B. Esta forma de repartir o dinheiro é um modo eficiente de promover uma grande diversidade de música.

A lei deveria assegurar que a indústria fonográfica não poderiam confisque estes fundos dos artistas, uma vez que os antecedentes demonstram que irão tentar fazê-lo. Falar em “compensar” o “detentor de direitos” é uma forma velada de propor a concessão da maior parte do dinheiro às companhias discográficas em nome dos artistas.

Estes fundos podiam vir do orçamento geral ou de um imposto especial sobre algo vagamente associado à audição de música como CDs/DVDs virgens ou o acesso à internet. Qualquer uma das soluções seria adequada.

* Apoie artistas mediante pagamentos voluntários. Isto já funciona razoavelmente bem para alguns artistas, incluindo o Radiohead, o Nine Inch Nails e Jane Siberry (sheeba.ca), mesmo com o inconveniente de ter que usar sistemas que exigem do comprador um cartão de crédito.

Se todo o fã de música pudesse pagar facilmente com dinheiro digital, se cada leitor de música tivesse um botão para enviar um euro aos artistas que criaram esta canção que acabaram de ouvir, você não clicaria ocasionalmente nele, talvez uma vez por semana? Somente os pobres e os muito avarentos se recusariam a tal.

Você pode ter outras boas idéias. Vamos apoiar os músicos e legalizar a partilha.

1. Leia este artigo, mas cuidado com o seu recurso ao termo propagandista “propriedade intelectual”, que gera confusão ao agrupar uma série de leis díspares. Veja este link para saber porque é que nunca é boa ideia usar este termo. (Ambos em inglês)

2. Leia the-future-of-copyright (O Futuro do Copyright, tradução portuguesa aqui)

Copyright 2009 Richard Stallman

Este artigo foi publicado segundo a licença Creative Commons Atribuição Não a Obras Derivadas versão 3.0.