ARede nº57 abril de 2010 – Com quase 3,4 mil unidades, entre Pontos de Cultura, Pontos de Leitura, Pontinhos e Pontos de Mídia Livre, o Programa Cultura Viva, criado há seis anos, representa a maior iniciativa governamental de democratização de apoio à diversidade cultural brasileira, de apoio a manifestações culturais tradicionais – até então à margem da cultura oficial – e de estímulo a manifestações contemporâneas. Sua maior expressão são os 2,5 mil Pontos de Cultura, que envolvem 25 mil trabalhadores, metade remunerada e metade formada por voluntários, e 750 mil pessoas diretamente envolvidas nas atividades culturais que cobrem um universo de 8,4 milhões de brasileiros, de acordo com os dados projetados a partir de pesquisa realizada pelo Ipea (veja ARede nº 55).
Qual o legado dessa experiência? Quais os desafios que se colocam para a sustentabilidade dessas iniciativas? Quais são os principais problemas enfrentados e quais os riscos que se anunciam no horizonte? Para avaliar o Programa Cultura Viva, a Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura montou uma rede de pesquisadores que apresentaram os resultados de seus trabalhos durante o Seminário Cultura Viva, uma das 15 atividades da Teia 2010 – Tambores Digitais, que reuniu cerca de 5 mil pessoas em Fortaleza (CE), entre 25 e 31 de março. Uma conclusão unânime é a de que o Programa Cultura Viva representa um ponto de inflexão importante na política cultural do MinC. Uma avaliação da história das políticas culturais no Brasil, apresentada por João Guerreiro, doutor em Política Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra que, se a ausência do Estado da cultura é a marca até os anos 1920, a partir de 1930, com a reconfiguração das forças políticas, econômicas, militares e sociais devido à ascensão de Getúlio Vargas ao poder, o país passa a conviver com uma política cultural de cunho autoritário que – com um curto intervalo de ventos democratizantes, especialmente no governo Jango Goulart – vai sobreviver até o final da ditadura militar. Com o governo Sarney e a Lei Sarney, depois substituída pela Lei Rouanet, só regulamentada no governo Fernando Henrique Cardoso, a política cultural oficial se abre ao mercado. Não sem antes as estruturas culturais sofrerem desmonte no governo Collor.
No governo Lula, lembra Guerreiro, os setores culturais conseguem se articular dentro do Estado e desenvolver uma política que não se limita mais apenas ao fomento da cultura erudita. Abre-se espaço para a promoção das manifestações culturais tradicionais de índios, quilombolas, grupos populares das diferentes regiões do país, marginalizados e ignorados pela cultura erudita e das elites. “O resgate da Cultura Viva é uma política que ainda está sendo construída e que vem enfrentando o próprio despreparo do aparelho estatal para se relacionar com esses grupos”, observa Guerreiro. Desse despreparo, que se manifesta no próprio arcabouço legal e na burocracia estabelecida para esse relacionamento, é que decorre a maior parte dos problemas enfrentados no dia-a-dia pelos Pontos de Cultura. É a enorme dificuldade dos movimentos culturais cumprirem as exigências burocráticas para repasse dos recursos e prestação de contas, fruto dos conflitos latentes e ainda não solucionados entre esses movimentos e o Estado.
E esses conflitos são maiores, como observa Guerreiro, pois o ponto de inflexão registrado na política cultural não foi acompanhado em outros setores do governo, a não ser o de políticas sociais. “É um governo de conflitos, com uma política econômica conservadora, um Estado organizado para servir à elite”, diz. Portanto, em sua avaliação, o Programa Cultura Viva, por se tratar da organização da esfera cultural pública, e não estatal, é ainda uma iniciativa em construção, com muitas fragilidades.
Principais eixos
E o que foi construído, do ponto de vista da pesquisadora Cristina Amélia, da Universidade Federal do Rui Grande do Sul, não foi pouco. Ainda na fase de conclusões preliminares, sua pesquisa sobre Pontos de Cultura aponta as principais características do Programa Cultura Viva. A questão-chave, diz ela, está na participação, como recurso de poder na reconfiguração do campo da cultura. Quem faz a cultura não é o Estado produtor, nem as forças de mercado, mas os agentes populares que participam do campo, “todos os agentes envolvidos no Pontos de Cultura, que são constituídos a partir de movimentos culturais já existentes nas comunidades, e que antes estavam fora dos mecanismos oficiais de apoio à cultura. Ao ser incluídos na política, adquirem novos poderes dentro do campo cultural, não só como agentes operativos. O importante é que participam da pauta”, diz a professora.
O tripé no qual se baseia o Cultura Viva e que tem se mostrado eficaz é constituído de recursos para o desenvolvimento das ações (recursos financeiros, tecnológicos e possibilidade de construção de redes de relacionamento entre os Pontos), autonomia para cada grupo fazer do seu jeito (sem intervenção do Estado ou dirigismo) e movimento (uma manifestação cultural só existe em movimento, senão morre). Cristina chamou a atenção principalmente para a necessidade de os Pontos se renovarem, pesquisarem, atrairem novos participantes. “É preciso evitar a criação de castas nos movimentos”, disse, destacando que o Programa Cultura Viva representa, na política cultural de Estado, a opção clara por determinados agentes do campo, da cultura popular. “Mas essa opção, para ser mantida, depende de os movimentos tomarem as rédeas para influenciar nas políticas, na mudanças dos editais, em novas condições para as licitações. A dimensão que vai permitir a afirmação dos movimentos culturais, da diversidade cultural brasileira, é a dimensão da política”.
Um dos grandes méritos do Cultura Viva é que o programa envolve não só um novo papel do Estado e da sociedade frente à cultura, mas parte do princípio de que o público não é uma massa homogênea mas também tem gostos culturais diversos. “Reconhecer que existem diferentes públicos é reparar uma dívida histórica”, comenta Alice Lacerda, que dedica sua dissertação de mestrado na Universidade Federal da Bahia a essa tema. O Cultura Viva contempla o conceito ampliado de cultura de diversidade cultural, que vai dos movimentos tradicionais de cultura, para os quais há um público natural das comunidades, à cultura midiática contemporânea, muito importante especialmente para a juventude, observa.
Embora reconheça que a cultura erudita recebe apoio de outros programas do MinC, diz que considera que o objetivo do Cultura Viva, de cobrir todas as matrizes e saberes culturais, peca, do ponto de vista de suas diretrizes expressas, ao concentrar 80% dos seus recursos na cultura popular. Sua colocação, baseada na análise dos documentos, foi criticada por outros participantes, que observaram que a cultura erudita já carreia a maior parte dos recursos da cultura no país. O próprio ministro Juca Ferreira, na abertura oficial do Teia 2010, ao defender a reforma da Lei Rouanet, já encaminhada ao Congresso Nacional, disse que o MinC não pode dispor de 80% dos recursos para a cultura, fruto da renúncia fiscal das empresas que escolhem elas mesmas os projetos a serem beneficiados e que são majoritariamente do campo da chama cultura erudita.
Riscos de sobrevivência
Um dos temas que permeou as apresentações e os debates sobre o Cultura Viva foram as condições de sobrevivência, com a mudança de governo. Como garantir a permanência dos Pontos de Cultura como movimentos vivos? Para Célio Turino, responsável pela criação dos Pontos de Cultura e secretário de Cidadania Cultural até o final de março – ele deixou o cargo para ser pré-candidato a deputado federal por São Paulo pelo PCdoB, sendo substituído pelo jornalista e poeta TT Catalão – , risco sempre existe. Mas ele acredita que o programa ganhou dimensão social, que os movimentos conseguiram desenvolver seu protagonismo e se apropriar de seus projetos, gerando uma capacidade de pressão e resistência.
Do ponto de vista institucional, a regionalização realizada por meio de convênios com todos os estados, à exceção do Paraná, foi um passo muito importante para a consolidação do programa. “Eu considero que a assinatura do convênio com São Paulo, por ser o maior estado de oposição, foi um sinalizador importante para o futuro. Dos R$ 54 milhões para o apoio a 300 Pontos de Cultura do estado de São Paulo, por três anos, o MinC entrou com R$ 36 milhões e o governo do estado com R$ 18 milhões. A seleção foi feita de forma democrática e as entidades selecionadas já receberam a primeira parcela”, relata.
Também Sofia Cardoso Rocha, que estudou a estadualização do programa em sua dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal da Bahia, considera que a estadualização foi uma medida importante para ampliar a descentralização e permitir a solução de problemas de relacionamento movimentos culturais/estado mais difíceis de serem encaminhados quando a relação é com o governo federal. Como exemplo, citou que na Bahia não há mais necessidade de licitação para a compra de equipamentos; basta ter três orçamentos, o que elimina parte das barreiras burocráticas.
No entanto, ela insiste em que a avaliação dos Pontos não pode se dar apenas por prestação de contas e relatório de atividades: “É importante discutir a presença dos Pontos nos conselhos municipais e estaduais de cultura e garantir a participação atuante da comunidade”. Ela considera que os Pontos de Cultura só vão atingir seus objetivos se atuarem em rede, compartilhando experiências e saberes. Essa também é uma preocupação de Turino: “O risco de uma mudança de visão no comando do programa não é o fechamento dos Pontos de Cultura. É que o programa passe a ser tocado de forma burocrática. Não basta distribuir recursos, é preciso estimular as redes, a troca, os encontros. É preciso promover anualmente a Teia”. Na Teia 2010, 88 manifestações culturais dos Pontos de Cultura foram selecionadas para participar da mostra artística.
PONTOS DE CULTURA NO BRASIL
89 Pontões de Cultura
1.836 Pontos de Rede
592 Pontos de Cultura
Subtotal 2.517
514 Pontos Leitura
281 Pontinhos
81 Pontos de Mídia Livre
Total 3.393