Um marco legal para a mídia

O advogado Pedro Serrano defende regras para evitar abusos de poder da grande mídia.

Verônica Couto

A Lei de Imprensa ficou caduca, e 22 de seus artigos foram suspensos, em fevereiro, por liminar do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF). A remoção do “entulho autoritário” foi comemorada por jornalistas e ativistas dos direitos humanos. Mas há quem pergunte se é bom para a sociedade viver sem uma lei que regule a atividade da imprensa, ou da mídia, em geral. Para o advogado constitucionalista Pedro Serrano, o vácuo regulatório é ruim para o cidadão. Deve-se aproveitar o momento, diz ele, para debater um novo marco legal, que aumente a responsabilidade social da mídia. Em vez de uma Lei de Imprensa, o advogado propõe uma Lei de Garantia de Direito da Informação. De um lado, impedindo a censura prévia, por quaisquer meios; de outro, protegendo o cidadão de abusos praticados em quaisquer veículos — jornal, rádio, TV, internet.

Sem isso, destaca Pedro Serrano, não há, por exemplo, garantia de direito de resposta; e as indenizações por crimes de calúnia e difamação, em ações baseadas apenas nos Códigos Civil ou Penal, têm valores ínfimos, em comparação ao porte das empresas. Ele é a favor de multas pesadas, sem limites prévios, e de um papel de regulador ético da atividade para o Judiciário. E, de modo a assegurar um espírito realmente republicano à comunicação no Brasil, defende o fim da renovação automática das concessões de radiodifusão, prevista no próprio texto constitucional. “É mecanismo imperial e absurdo”, diz.

A decisão de Ayres Britto vale até o julgamento, pelo STF, do mérito da ação impetrada pelo PDT, que acusa a Lei de Imprensa de inconstitucionalidade — uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. E há, também, na Câmara dos Deputados, desde 1992, um projeto de substitutivo da Lei de Imprensa (PL 3.232). Entre outras coisas, prevê multa indenizatória com base em critérios como tiragem, mas sem definição de teto.

ARedePor que foi importante, técnica e politicamente, a decisão do STF, de tornar sem efeito artigos da Lei de Imprensa?
Pedro • Até então, muitas decisões já vinham considerando inconstitucionais alguns dispositivos da Lei de Imprensa, face à Constituição de 88. Mas elas tinham efeito limitado às partes do processo; a lei, como norma geral, continuava valendo. À medida que se fosse atingido por alguns daqueles dispositivos, era preciso alegar a  inconstitucionalidade e aguardar decisão judicial. Tecnicamente, o maior benefício da decisão [do STF] é o que se chama ergo omni, expressão que significa válido para todos, com efeito para toda a sociedade. Já no sentido político, indiretamente, há uma alerta feito pelo Judiciário ao Legislativo, de que deve produzir uma nova regulação sobre o assunto. O Legislativo pode até concluir que não deve haver regulamentação especial para a imprensa, do que eu particularmente discordo. Nesse caso, que revogue a legislação de imprensa, mas que decida a respeito, como é papel do Parlamento.

ARede E por que você é a favor de uma lei específica para a imprensa?
Pedro • Estado de Direito é o Estado, juridicamente falando, em que há a superioridade das leis. Nos governos absolutistas, havia o estado de polícia, em que o Estado tinha com as pessoas uma relação de servidão: o imperador manda, e a vontade dele é autônoma, não é condicionada por nenhuma norma. A sociedade evoluiu para o Estado de Direito, em que a ordem jurídica, as leis, tornam-se o poder soberano, e não os governantes. O Estado é obrigado a respeitar os direitos do cidadão. Mas o Estado, quando estabelece relações com uma pessoa, tem um poder muito maior do que ela. Dois particulares entre si, em uma relação jurídica, são iguais, e a possibilidade de se prejudicarem um ao outro é muito menor do que a do Estado, na relação com uma pessoa. O Estado tem um poder muito maior que você, inclusive para te obrigar a fazer o que você não quer. Tem a capacidade de criar regras e é a única entidade na sociedade que pode usar de forma legítima a violência para impor suas decisões.

Em um quadro desses, você precisa que o indivíduo tenha direitos especiais, mais protegidos do que face a outros cidadãos. Na nossa Constituição, são os direitos fundamentais, os Estados Unidos chamam direitos civis, mas toda sociedade democrática  tem esse conjunto de direitos garantidos ao cidadão.

Por que recorro a esse exemplo? Porque a mídia tem grande poder. Quando ela estabelece uma opinião ou dá uma informação contra você, pode te gerar prejuízos muito maiores do que um particular, ao opiniar sobre você. Há um desnível. Eu não posso tratar o que o “Estado de S. Paulo”, a TV Globo, o SBT dizem a respeito de uma pessoa, no mesmo patamar do que o que eu digo. Por isso, não posso aplicar, na relação com a mídia, a mesma legislação que aplico para uma relação entre particulares comuns. O Código Penal e o Civil, quando tratam de questões relativas à imprensa, usam a mesma legislação aplicada a mim, a uma pessoa comum, quando falo algo contra você.

O poder que a mídia tem em uma sociedade de informação — em que a pessoa cada vez mais se torna signo — é imenso, comparável ao do Estado, tanto que é chamada de quarto poder. Então, pelas mesmas razões que a sociedade democrática de direito protege o cidadão na relação com o Estado, deve protegê-lo na relação com mídia. Uma observação importante: essa proteção deve se dar sem aplicação de censura prévia.

ARedeQuando um juiz proíbe a divulgação de uma informação, está usando a Lei de Imprensa ou o Código Civil?
Pedro • O Código Civil. Não haver uma legislação especial para a imprensa também implica a possibilidade de o Judiciário emitir liminares, decisões provisórias de toda a natureza, antecipações de tutela, que podem suspender a veiculação de uma notícia. Uma Lei de Imprensa é necessária tanto para garantir o direito da pessoa, como para garantir o direito de informação e de veiculação de notícia. Você não pode interromper uma atividade de veiculação de notícia numa sociedade democrática por uma liminar, como se faz em relação a outras condutas. Uma coisa é eu impedir uma venda, por meio de  liminar –— trata-se de ato comercial, e estou prejudicando o interesse de uma pessoa. Quando impeço a veiculação de uma notícia, posso estar prejudicando o interesse de todos e o funcionamento democrático da sociedade O Judiciário não deve ter esse poder.

ARede Se eu admito que a imprensa tem um poder tal de causar dano, e a liminar busca evitar um dano irreversível, sem essa possibilidade, não há risco para o cidadão?
Pedro • Sim, mas a notícia tem um timing que é preciso preservar. Temos que aprender com toda a história humana: preservar a veiculação de informações no tempo que o mundo de hoje exige é fundamental para a sociedade ser democrática. Isso não significa, contudo, atribuir à imprensa poder absoluto. Ela tem que ser responsável; quanto maior poder, maior a responsabilidade.
Essa responsabilidade pode se dar através de dois mecanismos. Primeiro, a procedimentalização, que é uma idéia mal discutida e foi o primeiro mecanismo encontrado pelos iluministas para controlar as decisões estatais. Quando os iluministas pensaram o Estado de Direito, na Revolução Francesa, ou na revolução norte-americana, a forma de racionalizar as decisões no Estado foi a procedimentalização. Isto é, você regular o processo de formação da vontade do Legislativo. Para formar uma vontade legal (do juiz ou do legislador), ou formar uma lei, é preciso passar por um processo regulado pelo Judiciário. A autoridade, antes de tomar uma decisão pública, é obrigada a passar por um procedimento regulado por lei.

Nesse caso, a imprensa precisa ter regulada a procedimentalização da notícia. Por exemplo, ouvir a outra parte não pode ser uma decisão ética do jornalista, mas sim uma obrigação legal, sob pena dele sofrer conseqüências civis e penais. Oferecer direito de defesa a quem seja acusado em uma notícia, em igual proporção à notícia acusadora, tem que ser um dever jurídico, não só ético. Mas essa responsabilização nunca deve ser a priori, apenas posterior à notícia.

Também precisa parar com essa história de condenar um jornal a pagar R$ 20 mil de indenização. Isso significa alguma coisa? Devemos copiar o modelo norte-americano de sanção civil. É a noção de que não vou apenas reparar o dano feito, mas vou dar exemplo. No abuso de poder de informação, tem que haver indenização realmente significativa, que coíba esse tipo de medida e force a empresa jornalística a pensar duas vezes.

ARede Os donos de jornais reclamam que o PL de uma nova Lei de Imprensa, que está no Congresso, não fixa limites para as multas.
Pedro • A sanção deve ser pesada. E é provável que os donos de jornais não gostem. Se houver um limite, teria que ser em modelo semelhante ao norte-americano, capaz de tirar grandes empresas de circulação. Se tomar uma multa de US$ 2 milhões, US$ 3 milhões, o sujeito pode ser levado à falência. Nos Estados Unidos, se uma seguradora vender um seguro, sabendo que não tem condições de cobri-lo, e o indivíduo provar que houve má-fé, a empresa toma uma sanção civil milionária. Do mesmo modo, o Judiciário poderia exercer um controle ético da atividade de informação, por meio do estabelecimento de indenizações efetivamente vultuosas. Duas ou três indenizações que um jornal tomar, é eliminado do mercado, porque está claro que não tem condições éticas de atuar. A intenção não é indenizar o sujeito pelo dano cometido, mas impedir que funcionem no mercado empresas que não pratiquem o Jornalismo de forma ética. Esse controle não pode ser exercido pelo Executivo, mas sim pelo Judiciário, onde a empresa vai ter todo o direito de defesa.

Não dá para os donos de grandes mídias quererem ser tratados como um particular quando xinga um vizinho; não dá para tratar uma informação na grande mídia, que pode acabar com a vida de um desconhecido, um político, um artista, como vizinho que xinga vizinho. Não dá para aplicar a mesma legislação, porque são situações muito diferentes. O abuso de poder, o ato de má fé, as notícias editorializadas têm que ser punidas com muita seriedade. A procedimentalização é isso: o jornal que não adotar um procedimento ético deve ser punido. Não adianta ficar na base da boa vontade do dono de jornal: se ele quiser, põe um ombudsman; se não, tira. Até porque isso acaba realizado de forma conveniente ao jornal. O espaço da contradição, ou o outro lado, é sempre menor que o da acusação.

Além disso, não é justo que eu, cidadão, que tive minha vida prejudicada pela imprensa, esteja sujeito à ética corporativista, de uma profissão a que eu não pertenço. A idéia republicana de cidadania é que o cidadão participe das decisões de tudo que lhe atinge. Ética jornalística quem faz são os jornalistas, não sou eu, cidadão. Mas, se a atividade me atinge, a sociedade como um todo precisa construir regras mínimas para a conduta jornalística; normas cidadãs, criadas pelo Legislativo.

ARede Como seria a lei de imprensa ideal?
Pedro • Uma lei de imprensa republicana. Portugal, vários países da Europa, Estados Unidos: no mundo, não é uma coisa inédita ter uma Lei de Imprensa. A atividade precisa ser regulada, porque atinge a vida das pessoas. E o Brasil tem tradição suficiente para criar sua própria Lei de Imprensa. É importante, de um lado, preservar a liberdade de informação. Mas entendendo que isso é um direito, logo envolve responsabilidade na veiculação. Não pode haver censura prévia, nem pelo Judiciário — liminares devem ser vedadas, nada pode impedir a veiculação de uma notícia. Isso é ônus da vida republicana e democrática. Por outro lado, a notícia veiculada — informação ou opinião — com abuso de poder, deve ser sujeita à sanção do Judiciário.

ARedeComo evitar a concentração da propriedade nas mídias?
Pedro • É totalmente possível preservar, nos limites do pensamento liberal, um mecanismo de democracia de propriedade nos meios de comunicação. Não propriamente coibindo a propriedade de veículo, mas usando as novas tecnologias para estimular a circulação de notícias alternativas, como TVs comunitárias e web TVs (um mecanismo fantástico para divulgar imagens). Não se pode deixar é que os lobbies dos donos de empresas de mídia impeçam o avanço tecnológico de chegar a todos. Porque é o que está acontecendo, essencialmente, no debate se as empresas de telefonia podem veicular imagem ou não. A lógica tem que ser republicana, da veiculação de informação. Se o sujeito consegue acumular capital com isso, bom para ele. Mas não pode impedir que outros também circulem informações pelos mecanismos que lhe forem viáveis.

Em segundo lugar, considero importante e necessário, no tocante à televisão e ao rádio, mudar a Constituição para acabar com esse sistema de capitanias hereditárias no serviço público. A lógica da Constituição, nessa área, é neandertal e feudal. Qualquer concessão de serviço público deve ser estabelecida pelo Estado e pode ser extinta pelo Estado, assegurado o direito de defesa. E, de tempos em tempos, o contrato se esgota e a concessão precisa ser submetida a nova concorrência pública. Quem oferecer melhores condições ganha. Mas como é a concessão de televisão no Brasil? Não pode ser rescindida pelo Estado; e só deixa de ser renovada por decisão de 2/5 (votação nominal) do Congresso Nacional. Está na Constituição, olha que absurdo.

Em qualquer outra concessão — energia, água, telefonia, etc. —, é preciso licitação. TV, não. Como se pode ter um contrato de concessão de serviço público de renovação automática? Submetê-lo à licitação seria trazer o mínimo de valor republicano, democrático e moral para o setor de rádio e TV. Se você aplicar valores liberais de mais de 200 anos, como é o caso das licitações no serviço público, já consegue uma baita democratização. Por que a família Marinho [dona da Globo] é mais cidadã do que a minha família, para ser dona de uma rede de TV? Para fazer essa concorrência, poderia se compor uma comissão conjunta do Congresso, Judiciário, Executivo, ou da sociedade civil. Quer ser dono da Globo? Vai ter que concorrer com outros empresários, oferecer contrapartidas à sociedade — em dinheiro, em tempo para programas educacionais, em obrigações em relação aos conteúdos.

Olha a que ponto chega a loucura: a TV é a única propriedade, em todo país, que não pode ser desapropriada pelo Estado. Tudo que for objeto de apropriação humana (diferente do ar, florestas, etc.), pode ser desapropriado: a tua roupa, a câmera fotográfica, teu relógio, tua casa pode ser desapropriada. Uma estação de TV, não. Até concordo que não deveria haver desapropriação, porque daria muito poder ao Executivo. Mas compor um órgão democrático para, pelo menos, fazer licitações periódicas, sim. É preciso reformar a Constituição, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC).

ARedeVocê defende alguma regra específica para a informação veiculada na internet?
Pedro • Estamos em uma sociedade onde a opinião do outro, da autoridade, é fundamental para minha auto-estima e para viver socialmente. Obviamente, o veículo que forma opinião tem um poder imenso. No caso dos blogs, a capacidade dele te atingir é relativa, não se compara a uma Globo. Mas é um veículo de comunicação. Uma nova Lei de Imprensa deveria, não regulamentar a internet, mas o abuso do direito de informar, em todos os veículos. Se o blog publica uma informação, procedimentalizando, ouvindo os dois lados, conferindo se a informação é verdadeira, tudo bem.

Deve-se aproveitar as boas experiências da mídia, para transformá-las em lei. Por exemplo, a obrigação de que todo veículo tivesse ombudsman. No Brasil, a expressão Lei de Imprensa ficou carimbada, corretamente, como algo produzido pela ditadura. Mas é possível uma lei republicana de imprensa. Não só de imprensa, eu diria de comunicação social, um código de defesa dos direitos do cidadão face à informação. Garantir o direito de informação, de um lado, mas, do outro, assegurar o direito do cidadão face ao abuso do poder de informação. Seria mais uma Lei de Garantia de Direito da Informação, do que uma Lei de Imprensa.