Um som maneiro


Desenvolvido em software livre, o GenVirtual é uma alternativa barata e motivante no tratamento de portadores de deficiência

Desenvolvido em software livre, o GenVirtual é uma alternativa barata e motivante de tecnologia assistiva      
Áurea Lopes

ARede nº56,marçode 2010 – Cabelo arrepiado, brinco na orelha, Ezequiel Manoel Soares tem 18 anos e gosta de guitarra. Esse é o instrumento que ele prefere “tocar” no GenVirtual, software – livre e com primeira versão disponível na internet – desenvolvido por pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Baseado na tecnologia da realidade aumentada (veja o texto abaixo), o programa vai muito além de uma ferramenta divertida para executar músicas digitais. Enquanto “brinca de roqueiro”, o jovem Ezequiel, portador de Distrofia Muscular de Duchenne, faz movimentos de flexão e extensão de cotovelo e de punho, torção de mãos, entre outros exercícios que ajudam a recuperar seus membros superiores, há onze anos comprometidos por deformidades decorrentes dessa doença genética.

Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim), no ano passado, mostrou que o programa é capaz de elevar de 74% para 88,6% o grau de motivação dos pacientes. Nos tratamentos convencionais, os exercícios são realizados com materiais como massa de modelar, por exemplo. As técnicas tradicionais têm vantagens como trabalhar a manutenção da amplitude de movimento e da força muscular. “Mas o entusiasmo dos pacientes com a atividade no computador é um ponto positivo de grande valor. Por isso, recomendo o uso complementar das duas modalidades”, avalia Adriana Nathalie Klein, coordenadora do setor de terapia ocupacional da Abdim e responsável pela organização do ensaio clínico do GenVirtual, feito com 16 pacientes da associação.

O GenVirtual tem como principal objetivo restabelecer ou melhorar funções motoras (coordenação, equilíbrio, mobilidade e sincronização) e cognitivas (atenção, memória, concentração, raciocínio e percepção sensorial), por meio de experiências musicais de criação, reprodução e audição sonora e musical, jogos de siga-sons-e-cores e brincadeiras rítmicas. Na prática, coloca-se sobre a mesa cartões com imagens de instrumentos e notas musicais. Uma câmera capta a imagem do instrumento, que será o selecionado para a atividade – a guitarra, no caso de Ezequiel. Depois disso, é só tocar os cartões em que estão desenhadas as notas e o computador executa a melodia.

Uma grande sacada é a mobilidade da solução. Diferente de um teclado musical, composto de teclas fixas e de tamanhos imutáveis,  nesse sistema o terapeuta pode criar elementos virtuais de diferentes cores e tamanhos e posicioná-los sobre a mesa em diversas formações, de acordo com as necessidades de cada paciente – mais longe, para que o cotovelo seja esticado; alinhados ao lado da mão em que o paciente tem menor mobilidade; na direção para o qual os dedos devem ser estirados etc. O programa também funciona para exercícios de membros inferiores, basta posicionar a câmera e os cartões de modo adequado a essa aplicação.

Atualmente, além do módulo de composição, que oferece opções de instrumentos de sopro (flauta, gaita, saxofone) e corda (violão, guitarra, piano), o GenVirtual traz um jogo da memória sonoro. Mas a “mãe da criança”, a pesquisadora Ana Grasielle, do Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica (USP), já está ampliando as funcionalidades do programa. Ela está testando o novo módulo Jogo das Palavras, que integra imagem, texto e som. Por exemplo: ao montar a imagem de uma casa, o usuário vê o texto escrito e ouve a palavra pronunciada. “É uma aplicação que pode ajudar a alfabetização de pessoas com déficit cognitivo”, diz Ana, que vai apresentar o GenVirtual em sua tese de doutorado, a ser defendida ainda este ano. Outra funcionalidade em estudo é o que Ana chama de “timing coincidente” – uma espécie de jogo em que o usuário precisa tocar no objeto real acompanhando o tempo determinado pelo programa.

Formada em Engenharia da Computação e cursando doutorado em Engenharia de Sistemas Eletrônicos, a autora do programa reforça que seu desafio, nesse projeto, é oferecer tecnologia assistiva de baixo custo e fácil utilização: “O GenVirtual pode ser colocado na televisão. Isso quer dizer que pode ser usado em casa, gratuitamente”. Ana explica que, em especial no universo de atendimento público de saúde, os pacientes não dispõem de recursos assistivos em suas casas. Fazem exercícios com equipamentos das clínicas e, terminado o horário, vão embora e esperam até a próxima sessão. “Mesmo um paciente de família mais humilde hoje tem computador. Ou tem um colega, um vizinho que tem. Então, é só baixar o software da internet e praticar mais um pouco em casa”.

A primeira aplicação prática do GenVirtual foi na Associação de Assistência à Crianças Deficientes (AACD), em terapias de pacientes com paralisia cerebral. Muitas pessoas que sofrem de deficiência física ou baixa mobilidade não conseguem interagir com instrumentos musicais convencionais. Nesses casos, a musicoterapeuta utiliza recursos assistivos, como adaptadores com ponteiras nas mãos para usar o piano, fixadores de pandeiro para uso das duas mãos, entre outros. Tocar música pelo computador foi uma novidade que fez sucesso. Segundo a coordenadora do setor de musicoterapia da associação, Marilena do Nascimento, o software permite muito mais do que criar melodias ou reproduzir músicas conhecidas. O GenVirtual possibilita treino motor e amplia as funções cognitivas como atenção, concentração e memória. “Depois que começamos a testar o programa na AACD, percebemos que a ferramenta poderia ser também útil em outros setores da área da saúde, como terapia ocupacional, fisioterapia etc.”, conta Ana.

www.lsi.usp.br/nate/projetos/genvirtual

A divertida realidade aumentada
Cada vez mais, sistemas computacionais respondem a toques, gestos e voz. O ambiente externo ao computador é capturado pelo hardware por meio de softwares específicos, auxiliados por dispositivos como câmeras e sensores. E, a partir desse recurso, cria-se a realidade aumentada, ambiente atrativo que desperta a curiosidade e a imaginação ao trazer objetos virtuais tridimensionais para o mundo real do usuário.

No caso do GenVirtual, os objetos virtuais são introduzidos no cenário real por meio do reconhecimento de símbolos musicais impressos em papel comum (cartões). Os cartões podem ser impressos em diversas cores e tamanhos, e posicionados na mesa de acordo com o desafio motor desejado. A identificação dos símbolos dos cartões é feita pelo processamento das imagens, capturadas por uma webcam conectada ao computador. Quando o símbolo do cartão é reconhecido, o GenVirtual cria um objeto virtual tridimensional associado ao som do respectivo cartão.