Uma chance para o ‘Brasil que se vira’

As Tecnologias digitais podem ser utilizadas para combater a desigualdade e promover a inclusão social, segundo o economista Ladislau Dowbor



Para o economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP, só uma política
articulada de apoio ao desenvolvimento local vai “fazer funcionar o
andar de baixo da economia”. E fazê-lo funcionar, explica, significa
combater a desigualdade e promover a inclusão produtiva de cerca de 100
milhões de pessoas, das quais 59 milhões confinadas no “quarto mundo
brasileiro”. Nesse sentido, destaca as tecnologias digitais, capazes de
quebrar o poder dos intermediários e fomentar a autonomia regional. A
distribuição do conhecimento, diz o professor, é a chave dessa
transformação. Por isso, ele também defende a circulação dos textos
científicos sob modelos de licenciamento que aceitam a reprodução sem
fins comerciais. E, com esse objetivo, está construindo uma rede com
vários pesquisadores.

O economista participou da produção do documento-síntese da Política
Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local, entregue ao presidente Lula
em 2006. Para o professor, é preciso assegurar aos empreendimentos
crédito, apoio tecnológico e institucional, sistemas de informação, e,
principalmente, articular de uma forma inteligente esses mecanismos.

No Brasil, ele avalia que existam 98 milhões de pessoas economicamente
ativa; sendo 31 milhões com emprego formal privado; e 8 milhões de
funcionários públicos. “Nos demais 59 milhões, está o Brasil que se
vira, o cara que apita na rua, os flanelinhas, os que ajudam a
estacionar o carro, todos os camelôs espalhados por todos os lugares,
os ambulantes. Tem gente que participa da safra do arroz no Maranhão,
depois vai para o corte de cana em São Paulo, depois volta para fazer
um bico na Serra Pelada”. É esse Brasil que Ladislau quer ver
desenvolvido.


ARede •
Quais os eixos principais para uma política nacional de apoio ao desenvolvimento local?

Ladislau • Participamos de um trabalho com cerca de 165 instituições,
que durou um ano e meio, tentando identificar como enfrentar o problema
central do país, que é, indiscutivelmente, a desigualdade. Um ponto que
se tornou evidente é que o problema não é só redistributivo, mas também
de organizar a inclusão produtiva — dar instrumentos para que as
pessoas possam participar nos grupos de geração e de apropriação de
riqueza.

Um segundo ponto é que, hoje, nenhuma empresa trabalha sozinha. Quando
pegamos as classificações e as metodologias do Milton Santos, que
divide a economia em circuito superior e inferior, essa divisão é muito
útil, porque vemos que o circuito superior da economia — bancos, 
empresas automobilísticas, plantadores de soja, etc. — têm sistemas
muito sofisticados de colaboração. Quando há demandas financeiras, eles
têm os contatos com os bancos. Se precisam vender um produto, compram
tempo na televisão. Se precisam abrir mercados, contam com viagens e o
Itamaraty para diversificar mercados no mundo.

No andar de baixo, a oficina mecânica, a cooperativa, os movimentos
comunitários, as ONGs não têm acesso aos recursos. Faz parte da nossa
trágica diferença entre ricos e pobres. Na realidade, o andar de cima
trabalha a sua exclusividade. Fazer uma rádio comunitária significa
enfrentar a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
(Abert). É natural que, quando o circuito superior tem todo esse
sistema de apoio, para a gente organizar a inclusão produtiva — estamos
falando de cerca de 100 milhões de pessoas —, é necessário ter
políticas, no sentido pleno, organização e apoio de diversas formas. O
que fizemos foi viajar por todo o país, pesquisando, para saber o que
seria necessário.

Precisaríamos de políticas de apoio financeiro, que aqui não existem.
Nos Estados Unidos, há o Community Reinvestment Act (CRA), que obriga
os bancos a investir localmente; na Alemanha, 60% da poupança é
administrada pelas sparkassen, caixas econômicas públicas locais; na
França, funciona um sistema chamado de placement éthique, aplicações
financeiras éticas. O Banco da França garante créditos que são
mediados, não por organizações financeiras, mas por ONGs financeiras.
Casos assim até existem no Brasil. Estive em Criciúma, numa oscip de
intermediação financeira. São entidades capazes de localizar
necessidades de maneira muito mais flexível e inteligente do que um
gerente de crédito convencional. Nos países desenvolvidos, esses
sistemas são muito sofisticados. Nos Estados Unidos, 54% das empresas
têm até cinco empregados. Ou seja, lá existe um sistema comunitário
extremamente sólido.


ARede •
Além do suporte financeiro, quais outros elementos importantes para essa economia local?

Ladislau • Nesse documento-síntese da Política Nacional de Apoio ao
Desenvolvimento Local, identificamos oito eixos básicos para fazer
funcionar o andar de baixo da economia. Entre esses eixos, estão a
parte financeira, com a inclusão do sistema de comercialização, que é
uma forma de intermediação financeira no Brasil; o apoio tecnológico;
um sistema de apoio institucional, com a criação de fóruns de
desenvolvimento, agências etc; e a organização de sistemas de
informação. Não há nenhum município no Brasil com sistema gerencial de
informação minimamente decente.

Para fechar esse leque dos oito eixos, a parte de geração de emprego e
renda é muito interessante, porque, em todos os municípios, há um monte
de gente e terra parada, com pessoas passando fome. Não é preciso
doutorado em Economia para pensar que algo pode ser feito. Por exemplo,
a maioria dos municípios tem condições péssimas de saneamento básico,
então, poderia se aproveitar as pessoas que estão paradas em programas
de microdrenagem, de organização de um sistema de saneamento. Cada R$
1,00 aplicado em saneamento libera R$ 4,00 para a saúde; sem falar que
a microdrenagem resgata praias, turismo, pesca.

Voltando ao microcrédito, praticamente todos os sistemas de apoio são
frágeis, porque são desarticulados. A Embrapa ajuda com uma parte de
pesquisa tecnológica; o Sebrae com os cursos; cada um dá um pedaço. E
na pesquisa nós vimos que é fundamental um sistema integrado de apoio.
Hoje, há desarticulação; não há institucionalidade de recepção de
recursos no nível local. Isso não quer dizer que as coisas não estão
andando. Por exemplo, o desenvolvimento regional sustentável é uma
mudança significativa. Veja o caso do Banco do Brasil. Fazia parte do
projeto estudar como eram remunerados os gerentes de bancos. Para
receber bônus, considerava-se a pontuação da agência por dois
critérios: maximizar a captação e minimizar riscos. Se ele financia uma
pequena empresa local, de maior risco, reduz o bônus e a pontuação da
agência. Mudaram os critérios e acrescentou-se um terceiro: o
desenvolvimento regional sustentável. O gerente tem que fazer um MBA em
desenvolvimento regional sustentável para identificar onde há
investimentos críticos, para destravar o desenvolvimento. Isso é forte.
Especialmente, se houver uma sinergia entre o desenvolvimento regional
sustentável, que está sendo criado, e os gerentes bem treinados.
 

ARede •
Qual a importância do programa Território da Cidadania?

Ladislau • Esse negócio de dizer que os povos pequenos não sabem
administrar dinheiro, portanto, não deve chegar dinheiro a eles, é a
tal questão do que veio antes, o ovo ou a galinha. Nunca vão aprender a
administrar o dinheiro, enquanto ele  não chegar. O Território da
Cidadania vai alimentar um conjunto de regiões do país críticas em
recursos. Isso é extremamente importante.

Os avanços que estão havendo no Brasil são significativos. Vão desde os
esforços para o desenvolvimento local integrado e sustentável, que
foram muito precários e acabaram se sedimentando em apenas 170
municípios no país, dos 700 programados, porque não havia apoio.
Depois, o Programa Fome Zero, por exemplo, obrigou a criação dos
Comitês Gestores Locais para administrar o processo. As experiências
dos mais diversos conselhos, de saúde, etc., que, no começo, eram só no
papel — e continuam sendo em grande parte ou absorvidos pela autoridade
política local —, na realidade criaram um conjunto de mecanismos. Está
se gerando uma capacidade de recepção de políticas de apoio a nível
local de diversas formas. Creio que já há maturidade para fluir
dinheiro sério para essas experiências.

O que avançou muito foi a compreensão, por parte da área acadêmica, das
instituições de fomento e nos meios políticos, da territorialidade dos
processos de desenvolvimento (…). A força do desenvolvimento local é
que você só apropria respeitando as pessoas, dando iniciativas; isso
gera sistemas realmente diferenciados de política. E são as que
funcionam. Um exemplo, que vai na outra ponta do espectro. Na Suécia, o
Estado administra 66% do PIB; no Brasil, 34%. Mas dos 66% da Suécia,
72% são administrados localmente. Isso se vincula a outra dinâmica, que
é o processo de urbanização. No Brasil, no nível local, os municípios
administram, quando muito, 15% dos recursos públicos.


ARede •
Como as novas tecnologias da informação e das telecomunicações influenciam os projetos de desenvolvimento local?

Ladislau • O ponto básico, o que está mudando a nossa sociedade, tem
relação com a dimensão do conhecimento. O produto físico é uma coisa
automatizada, mecanizada. O valor passou para o nível da informação, do
conhecimento acumulado, das tecnologias. O deslocamento de visão é o
seguinte: a riqueza está baseada em produtos materiais. Se tenho um
relógio e passo para você, deixo de ter o relógio — a propriedade
privada tem esse sentido. Mas, se passo conhecimento adiante, não só
não o perco, como você que tem um repertório diferente do meu, vai
ecoá-lo de outra forma e multiplicá-lo em outra coisa. Em termos de
formulação econômica, é um consumo onde não se reduz o estoque, pelo
contrário, ele aumenta.

Isso nos leva a processos colaborativos na sociedade, uma mudança
radical de paradigmas, que as pessoas ainda identificam com certo
idealismo, ou com as heranças das utopias antigas. E que não é o pé no
chão — como o livro do Wikinomics (“Como a colaboração em massa pode
mudar o seu negócio”, de Don Tapscott e Anthony Williams, 2007),
mostrando como empresas passaram a ganhar mais por meio de sistemas
colaborativos do que através da competição. Esse é o pano de fundo
desse fantástico deslocamento para a sociedade do conhecimento. Muitos
estudos vão sendo traduzidos, desde Pierre Lévy (“Inteligência
Coletiva”) ou de “O Imaterial”, de André Gorz. Há um conjunto de
trabalhos surgindo nessa área, onde há ainda um deslocamento da guerra
que, na nossa época, dirigia-se contra quem controlava os meios de
produção. Hoje é o acordo Trip’s (Trade-Related Intellectual Property
Rights), na OMC, um embate mundial: querem controlar o acesso ao
conhecimento.

No nível da produção de conhecimento, centros de pesquisa, academia,
isso está se deslocando. No meu site, toda a minha produção científica
está online, gratuitamente, na linha Creative Commons. Não é a ‘casa da
mãe Joana’ — não pode comercializar e alterar os textos, nem usá-los
sem citação; mas pode reproduzir para fins não-comerciais e
científicos, visando multiplicar conhecimento. No site do Massachusetts
Institute of Technology (MIT), um dos principais centros de pesquisa do
mundo, é possível acessar o ocw.mti.edu — ocw vem de open courseware
com todos os cursos do semestre passado, na íntegra e gratuitos. O
mesmo fazem as universidades de Berkeley e Harvard. As tentativas de
impedir o acesso ao conhecimento e às tecnologias são uma coisa
absurda. Não só não devemos impedir, como devemos fomentar o acesso. O
relatório do International Finance Corporation, do Banco Mundial,
intitutlado “The next four billion” (Os quatro próximos bilhões),
aponta a existência de 4 bilhões de pessoas sem acesso aos benefícios
da globalização. Significa que 2/3 da população mundial não está
inserida no processo.


ARede •
Como isso chega ao nível do desenvolvimento local?

Ladislau • A conectividade muda radicalmente os termos do jogo. Um
exemplo é o do pessoal que cata castanha no Amapá, depende do
atravessador e não ganha nada. Na gestão do [João] Capiberibe
[ex-governador do Estado] eles organizaram uma cooperativa, fizeram um
acordo com a universidade de Macapá, passaram a triturar as castanhas.
No laboratório, passaram a extrair as essências, e como estamos na era
da internet, a cooperativa vende direto para as empresas de perfumarias
da França. O resgate da possibilidade de comunicação é tecnicamente
viável e barato. E gera novos processos de desintermediação.


ARede •
Como você avalia a recente política do governo, voltada para
expandir a infra-estrutura de acesso a internet em alta velocidade para
todos os municípios brasileiros, com conexão em banda larga a uma
parcela das escolas públicas?

Ladislau • A economia da conectividade ainda é recente. A grande
corrida mundial é o Wi-Fi urbano gerando sinal de captação em qualquer
ponto, com custo médio por domicílio de US$ 10. Se você tem um problema
para resolver, qualquer que seja, em vez de pegar um ônibus ou um carro
para ir lá, e perder a manhã de trabalho, quem viaja é a informação,
não são as pessoas. Na realidade, a socialização da informação e seu
deslocamento virtualmente gratuito geram economias externas
territoriais fantásticas. São economias externas nas empresas, mas
internas aos territórios. Acabou o intermediário. O eixo principal é a
conectividade. No Brasil digital, você dá instrumentos para o pessoal
assumir as iniciativas dos seus processos. E tudo se torna mais barato.

Visitei Turmalina, no Vale do Jequitinhonha, onde fazem aquelas bonecas
maravilhosas. Dá vontade de pedir para dobrarem o preço. Você vai na
Vila Madalena [bairro de classe média de São Paulo], e vê o preço a que
vendem as bonecas. Não é complicado colocar na região um ponto de
internet, para as pessoas de lá poderem vender cinco vezes mais caro. A
conectividade rompe as estruturas de poder tradicional. Permite avanços
para o pequeno produtor. Mas não adianta só ter informática sem apoio
tecnológico e financeiro. O ciclo de reprodução é sempre um ciclo, tem
que ter financiamento, tecnologia, apoio institucional, sistemas de
estocagem, de comercialização primária, etc. Não adianta ter o Sebrae e
a Embrapa em sistemas desarticulados. O ideal é juntarmos sistemas de
apoio com geração de sistemas de absorção local e com a conectividade.
Eu acredito muito nisso.


ARede •
Qual o papel da educação no processo?

Ladislau • Fizemos um projeto chamado Educação e Desenvolvimento Local,
que o MEC está implementando. A idéia é requalificar todos os conselhos
municipais de educação no país, para inserir no currículo escolar o
estudo a própria cidade ou região em que os alunos moram. A educação
não deve ser um trampolim para fugir da realidade, mas um instrumento
formando gente para entendê-la. As pessoas não sabem por que o rio está
poluído, quem o está poluindo nem qual é a terra sub-utilizada. Agora,
à medida que o processo de produção de conteúdo se democratiza, teremos
mudanças profundas. Mas é uma briga. Estou tentando formar uma rede de
professores que disponibilizam conteúdos online. Meu site está com uma
média mensal de 50 mil a 60 mil acessos. Como só tem textos
científicos, a média é gigantesca. Por que as pessoas fazem isso?
Porque, nas universidades,  não posso xerocar um livro, só um
capítulo. Eu leio um livro e acho interessante. Xeroco um capítulo e
ponho no escaninho. Para mim, que leu o livro, aquilo tem sentido; para
o aluno, significa coisa nenhuma, ainda mais porque a bagagem dele é
pequena. A gente faz isso na USP, na PUC, em instituições que estão no
século XXI.

Eu conversei com a Marilena Chauí, com a Maria Vitória Benevides, com o
Fábio Konder Comparato. Imagina se a gente pega nomes como esses,
generaliza o acesso online gratuito aos textos —  e não são só os
nossos, mas resenhas, contatos com autores, outros documentos. Cada um
de nós tem a capacidade de não só apresentar textos, mas de credenciar
toda uma rede de pesquisadores e autores novos. Ou seja, pegar toda
essa visão renovada sobre a sociedade e generalizá-la.


ARede •
Alguma universidade brasileira oferece cursos na íntegra, como faz o MIT?

Ladislau • Não, eles estão fanatizados com a propriedade intelectual.
Eu dei um curso na USP, e uma aluna disse que não leu na internet a
minha “Democracia Econômica”, porque acha que me prejudica se não
comprar o livro. O pessoal está colonizado por dentro, com essas
bobagens sobre propriedade intelectual. É mudança cultural, e será uma
briga, porque envolve grandes empresas, a mídia grande. Venderam para
as pessoas que xerocar prejudica o autor, quando, na verdade, atinge
intermediários do processo.


http://dowbor.org/